O AMOR MATERNO

leitura dramática

 

O AMOR MATERNO

Sou você, embora você não seja eu. Não é e não pode ser, porque essa é a condição da sua existência. A diferença da relação entre a mãe e o filho e entre dois amantes é que mãe e filho foram Um e precisam se tornar dois, enquanto os amantes querem ser Um e são dois. A mãe e o filho estão fadados à separação, e os amantes, a desejar uma unificação impossível.

Separar-se do filho é deixar que ele possa diferir e, mais que isso, se ausentar. Talvez nada seja tão difícil quanto dizer: “Vá em direção a você mesmo”. Foi a fim de ter a filha presente que, durante 25 anos, Madame de Sévigné escreveu para ela duas ou três cartas por semana. Mas não escreveu só por isso. Paradoxalmente, o fez para se separar da filha, existir através da sua escrita, e não da função materna, que cria a dependência e pode ser comparada a uma droga. A cada carta, Madame de Sévigné conquistava sua independência. Por sorte, o mesmo se passa comigo.
O apego à função materna falseia o julgamento a ponto de a mãe considerar ingrato o filho que se separa. Isso é claro numa das músicas mais comoventes dos Beatles, She’s leaving home. Era uma quarta-feira, cinco horas da manhã, quando a filha – tendo deixado uma carta – fechou silenciosamente a porta do quarto, desceu até a cozinha, abriu sem barulho a porta de casa e saiu. Ao pisar do lado de fora, “ficou livre”, diz a letra. Segue-se a lamentação dos pais: “Nós demos o essencial das nossas vidas, nos sacrificamos, demos o que o dinheiro pode comprar”. E a mãe acrescenta: “Papai, o nosso bebê foi embora. Por que tanta indiferença? Como foi que ela pôde fazer isso?”.
Para essa mãe, que se refere à filha como “o nosso bebê”, a partida é um ato injusto, cruel. Sem o bebê, ela fica imaginariamente privada do corpinho, que se molda sem resistência no seu colo… da mãozinha, que ela pode pegar e cabe na palma da sua mão… do pezinho oferecido. Fica privada de uma inocência, que faz dela a protetora, e de uma demanda contínua, que a transforma numa fonte perpétua de amor. Com o bebê, a mãe não sabe do tempo, pois seu tempo é o da paixão que não acaba nunca pelo filho.

O AMOR PAIXÃO

Conheci-o num dos bailes do 14 de Julho – o da Île Saint-Louis. Enxerguei sua aura e fui me aproximando. Não podia perdê-lo de vista. Parei na frente dele e fiquei ali, esperando. “Será que ele me tira para dançar?” Tirou, já dizendo: “Proibido proibir”. Era a palavra de ordem de Maio de 68, e ela me convinha. Girei vendo o Hôtel de Ville, a Notre-Dame, o Panthéon no alto da Montanha Sainte-Geneviève; comemorando, sem saber, a vida que ia começar em Paris, a cidade que não acaba nunca, onde ninguém pode andar olhando para o chão, porque a beleza está sempre presente. A dança me abria a porta do infinito.

Fomos jantar. Você é quem? Brasileira? Atravessou o oceano para trabalhar com Lacan? Talvez seja uma mística, ele me disse, farejando a experiência que eu tenho quando escrevo, uma experiência semelhante à do místico, pois a palavra se materializa na tela precedendo quase sempre a reflexão.

Entre nós dois, havia uma afinidade profunda. Sem saber, eu também era uma surrealista. Sempre achei que a aventura mora na esquina, como diz Breton, e é preciso errar para viver. Aquele 14 de Julho datou o encontro de dois nômades e o início de uma longa história franco-brasileira.

Atravessamos Paris até o apartamento onde ele morava. Rolamos. Saí enquanto ele dormia, mas deixei o número do telefone. Saí flanando, com a aura do 14 de Julho. Não podia imaginar que o futuro daquele encontro seria uma história de trinta anos e eu, um dia, seria a viúva, atravessando a França para acompanhar o féretro. Se fôssemos capazes de imaginar o futuro, não viveríamos. Ficou a fotografia de um belo alsaciano de terno escuro e gravata listrada em cima da mesa onde escrevo. Por sorte, Ella Fitzgerald canta e a voz me acalenta: “I won’t dance. Why should I? Merci beaucoup”.