Novelas brasileiras

Novelas brasileiras

 

P: O que essa novela Avenida Brasil espelha da sociedade brasileira?
BM: A começar, o gosto pela violência, que a novela explora para emplacar. Depois, o gosto pela vingança, próprio do machismo, cuja ética é tão contrária à mulher quanto ao homem, mas que pode estar tão implícito na conduta feminina quanto na masculina. Nina é tão machista quanto Carminha, as duas se espelham o tempo todo. As duas, por sinal, são mulheres originárias do lixão, onde a sobrevida implica força e, portanto, é o padrão masculino que prevalece. Como eu digo em E o que é o amor?, o machismo é uma ética infeliz e assassina. Sua história é a que se lê em Tragédia Brasileira, de Manuel Bandeira. Misael, funcionário público, conhece Maria Elvira, tira-a da prostituição, instala e trata. Ela arranja namorado. Ele, para evitar escândalo, muda de bairro, muda 17 vezes, até um dia matá-la a tiros. Misael indubitavelmente fez de tudo para escapar ao imperativo machista, mas não teve como.

P: O nome Avenida Brasil remete a uma avenida que corta 27 bairros do Rio e tem interseções com várias rodovias. Sua temática aludiria ao País urbano?
BM: Apesar da palavra “avenida”, acho que a novela não diz respeito ao urbano ou ao rural. Veríamos essa mesma cena no campo. Apego-me mais à palavra “Brasil” e ao que há de mais negativo na cultura brasileira, que é a paixão pelo ódio.

P: O brasileiro gosta de odiar?
BM: É um traço da nossa cultura, provavelmente de origem mediterrânea. São três as paixões humanas: a do amor, a do ódio e a da ignorância, que é a paixão do não saber, de negar a realidade. A paixão do ódio, o machismo cultiva. Como exemplo, temos as peças de Nelson Rodrigues e os romances de Graciliano Ramos. Pense no que diz Jonas em Álbum de Família: possuir e logo matar a mulher que se ama. Ou pense em Paulo Honório, em São Bernardo, que considera que matar Madalena é ação justa. Ele então não a supõe infiel?

P: O cotidiano dos emergentes é o grande eixo da novela, que tem atraído de A a Z. As classes já misturaram seus gostos?
BM: Não acho que o cotidiano dos emergentes seja elemento forte de identificação. A identificação resulta do gozo sádico do espectador, gozo que a imprensa e a televisão exploram desde sempre – lamentavelmente, porque esse gozo sustenta o gosto pela vingança. Mãe Lucinda pode dizer que a vingança só leva à vingança, procurando fazer Nina mudar de ideia, mas é com esta que o espectador mais se identifica. Porque, de um modo ou de outro, todos somos injustiçados, e o gozo sádico nos tenta.

P: Por que a vingança lhe parece tema central? Por que não a traição ou a chantagem?
BM: Colocar em cena uma mulher vingativa não deixa de ser uma novidade. A vingança aqui no país sempre foi para os homens. Doca Street, Lindomar Castilho… As mulheres, que são ultrajadas de diferentes maneiras, consciente ou inconscientemente, se sentem recompensadas. Pouco antes da novela, ouvi no Jornal Nacional que o aborto consentido continua a ser crime e cabe ao médico decidir se a mulher tem ou não o direito de abortar. Como se o médico fosse arcar com a responsabilidade de ser mãe! Chega a ser revoltante.

P: Os homens da trama parecem facilmente manipuláveis, como se vê nas obras literárias mencionadas em Avenida Brasil, entre elas Madame Bovary e O Primo Basílio. Como entender esse predomínio do feminino?
BM: Acho que não se pode comparar Carminha com Madame Bovary, que é um Quixote francês. Carminha é uma manipuladora altamente realista. A Bovary, como o Quixote, é vítima do seu imaginário. Paga muito caro pelo adultério e acaba se suicidando. Por outro lado, Carminha e Nina são dois machões. A Bovary é muito feminina. O tema dela é o amor, que não é o tema das mulheres de Avenida Brasil.

P: O horário eleitoral começa daqui a um mês, com figuras reais que mais parecem personagens de folhetim. Nesse sentido, dá para estabelecer um paralelo entre o gênero “propaganda eleitoral” e o gênero “novela”?
BM: Não sei. O que eu sei é que a novela brasileira se limita a retratar a sociedade em que vivemos.

P: E o horário eleitoral não?
BM: Você está tomando o horário eleitoral como se fosse ficção?

P: A senhora acompanha o horário eleitoral brasileiro?
BM: Graças a Deus, não. Mas os políticos, de fato, parecem personagens de novela.

P: Jorge Amado, cuja Gabriela está na telinha, já disse que o samba é denominador comum da nossa cultura. E a novela?
BM: A novela também, mas novela não é arte. Tem um caráter absolutamente documental. Não chega a se constituir uma grande metáfora da sociedade brasileira.

P: A senhora mencionou que o que há de mais negativo na cultura brasileira é a paixão pelo ódio. O que haveria de mais positivo?
BM: O fato de privilegiarmos a cultura do brincar, uma cultura da sátira, da zombaria. Ela zomba do que é sério, cultua o riso e se realiza através do gracejo. O impossível para ela não existe, porque, dispondo de várias máscaras, ela o contorna. Assim sendo, não é de briga, é pacífica, não faz guerra nem mesmo contra a guerra, brinca, e essa é sua maneira de resistir a tudo o que a contraria. Sua coragem é a do humor, a de quem dribla a tristeza e só aposta na alegria. Inadvertidamente sacrílega, essa cultura não reverencia senão irreverentemente as outras culturas que ela, brincando, dessacraliza.

P: O Brasil é uma grande avenida de ficções?
BM: Não. A grande avenida de ficções é o carnaval, que não é uma ficção, é uma realidade por meio da qual o Brasil se reinventa todo ano, propiciando ao mundo inteiro a alegria de que este precisa.

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Entrevista concedida a Mônica Manir. “Apaixonados pelo ódio”, O Estado de S.Paulo, São Paulo, 29 julho, 2012.