Michel Serres: Educação e mestiçagem

Michel Serres: Educação e mestiçagem

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Publicado como “Viajar é preciso. Para aprender”.
Folha de S. Paulo
, 11/04/1993

Formado em matemática e em filosofia, Michel Serres foi oficial da marinha de guerra antes de se dedicar à filosofia das ciências e se tornar professor. A sua biobibliografia tanto menciona os navios em que serviu quanto os livros que escreveu e as universidades do mundo em que lecionou. Serres é um pensador que fez pouco das especializações existentes e se distinguiu ao percorrer os saberes para encontrar a ponte que os liga. À maneira do navegador, privilegiou a rota e a passagem, chegando a dar a um dos seus livros – o quinto volume de sua série Hermès – o título evocativo de Passagem do Noroeste, referência tanto a uma das grandes aventuras marítimas do século passado quanto à tentativa de conectar ciência e humanidades. É membro da Academia Francesa e diretor da coleção “Corpus da Filosofia Francesa”, publicada pela editora Fayard. Foi conferencista da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo em 1973. Muitos de seus livros foram traduzidos no Brasil, como Variações sobre o corpo, O incandescente, Notícias do mundo, Uma filosofia da ciência, e em Portugal, como O terceiro instruído, Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo.

O terceiro instruído é o título de um livro nada acadêmico que Michel Serres publicou em 1991. Nessa obra, o filósofo faz bem pouco da figura arrogante do doutor, dizendo que basta, para sê-lo, ter copiado cem modelos e que só é verdadeiramente instruído o homem de muitas culturas.

O livro é um tratado sobre a educação, que se desenvolve através do elogio da viagem e do saber que dela resulta. “Parte”, escreve Serres, “deixa o ninho para te enriqueceres com os costumes de outros lugares, aí ouvires palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo ao vento e à chuva, porque, para ser verdadeiramente educado, é preciso te expores ao outro, esposar a alteridade e re-nascer mestiço.”

Tendo em vista a publicação tão oportuna no Brasil desse livro, que se opõe ao fechamento cultural e faz do aprendizado um sinônimo de mestiçagem, entrevistei Michel Serres no escritório da sua residência, em Vincennes, perto de Paris.

Betty Milan: Fernando Pessoa, o maior poeta da lusofonia portuguesa contemporânea, dizia que navegar é preciso. Você é um filósofo pessoano, porque nunca se apresenta sem lembrar que foi marinheiro, o que obviamente não é gratuito. O que pode e o que deve o intelectual moderno aprender com o navegador?
Michel Serres: (Risos) O mar faz descobrir um mundo ignorado aqui na terra. Existe, aliás, um texto de Hegel sobre isso. O homem só se torna inteiramente responsável por si mesmo quando entra num navio. Abre mão da segurança que a sua história lhe dá e só conta com o próprio talento.

BM: O terceiro instruído está sendo lançado agora no Brasil. Gostaria que você falasse do livro.
SERRES: O lançamento me alegra. Escrevi o livro porque é bom que, no fim da carreira, um professor faça o balanço da sua experiência pedagógica. Dediquei a minha vida aos jovens e tinha vontade de retratar o homem do século XX. A maioria dos filósofos da educação, Montaigne, Fénelon, Rabelais, traçou retratos, e foi o que eu fiz.

BM: Em O terceiro instruído você diz que, antes de se educar, o jovem é um velho papagaio, só capaz de repetir, e você dá a entender que não é propriamente com os atuais doutores que ele deixará de ser papagaio. Qual o perfil do verdadeiro professor e o do aluno instruído?
SERRES: Digo que a finalidade da instrução é parar de instruir. Na língua francesa a palavra fin designa simultaneamente o fim e a finalidade. Não há nada melhor do que instruir alguém, transmitir a totalidade da nossa experiência e do nosso saber, mas ao ter feito isso é preciso parar, deixar que o outro seja independente e comece a inventar. Acho ótimo, aliás, que você tenha me colocado essa questão. Olhando para mim, você percebe que sou um velho, porém a experiência mostra que, contrariamente às aparências, a gente é muito velha quando é jovem e depois, avançando na idade, conquista uma segunda juventude.

BM: No seu último livro, você incita os jovens a partir, ir ter com o outro, se separar. A separação é, na sua filosofia, um valor positivo.
SERRES: A palavra pedagogia, comum à língua francesa e à língua portuguesa, é feita de paidos (criança) e agogia (conduzir), porque o ensino, na verdade, é uma viagem. Pode ser uma viagem imaginária ou intelectual, mas é evidente que a educação começa com uma espécie de partida, implica abandonar hábitos, mudar de língua, partir do lugar onde se nasceu. Não existe educação se não houver o “Levanta-te e vai”. Mais ou menos como o que se passa entre os pássaros. Quando as asas dos filhotes começam a aparecer, os pais os empurram para que caiam do ninho, abram as asas e saiam voando.

BM: Montaigne filosofava numa língua literária, escreveu que “a viagem forma os jovens”, incitando-os a viajar, e se interessou muito pelos índios da América do Sul, em particular pelos brasileiros. Você se inscreve na tradição de Montaigne…
SERRES: Sim. E no que diz respeito à viagem, gostaria de acrescentar que viajar não é só sair de casa, é sobretudo encontrar o outro, porque é com ele que a gente aprende. Óbvio que se você só encontra pessoas cuja língua é a mesma, que têm os seus hábitos e a sua religião, você não aprende nada. A alteridade é essencial.

BM: Você diria que a paixão pelo outro é uma paixão francesa?
SERRES: Desejaria que fosse universal.

BM: Mas você sabe que não é.
SERRES: Foi por isso mesmo que escrevi o livro. O filósofo tem o dever de mostrar ao homem o seu horizonte. O livro diz respeito a um triângulo: o eu que parte e encontra o outro e o terceiro, que resulta do encontro e é instruído. Todo aprendizado é a mistura de um eu e de um outro, que resulta num mestiço, o terceiro instruído.

BM: Você ensina quatro meses por ano nos Estados Unidos. Como é na cultura americana a relação com o outro?
SERRES: Nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceu no Brasil, a mestiçagem não foi bem-sucedida. Ainda existem bairros muito separados, os chineses ficam em Chinatown, os italianos em Little Italy etc. No Brasil, as raças, as culturas e as línguas realmente se misturaram, o melting pot de fato aconteceu. Há asiáticos, americanos, africanos, europeus e não há uma comunidade dominante em relação às outras.

BM: Gilberto Freyre, o autor de Casa-grande & senzala, repensou a própria sociologia a partir da noção de mestiçagem. Costumava mesmo dizer que havia aprendido latim com o pai, francês com a mãe e o principal, cultura brasileira, com a mulata que dele cuidava na infância. Freyre certamente se diria um mestiço, como você em O terceiro instruído. Poderia ter sido um interlocutor seu. O que o convívio com os brasileiros em 1973 lhe deu?
SERRES: Descobri a latinidade, a existência de uma comunidade latina na qual eu acredito muito. Quando vou à Itália, a Portugal, à Argentina ou ao Brasil, me sinto em casa, e isso porque as línguas latinas têm muito em comum. As culturas são diferentes, mas a gente sempre encontra um ponto de coincidência no que diz respeito à relação com o outro, ao gosto pela beleza. Nós, franceses, nos sentimos mais próximos dos brasileiros do que dos ingleses, apesar de sermos vizinhos destes.

BM: O que mais resultou da sua viagem de 1973?
SERRES: Descobri, no Brasil, que o país se parecia com o mundo inteiro. Pelos problemas de economia, de demografia, de saúde, representava o mundo, e isso foi o que mais me impressionou. Percebi que existia um universo, um global em preparação. Em 1973, na França, podíamos dizer que existiam os problemas franceses e os outros, os do mundo, que eram diferentes. O Brasil já espelhava o mundo inteiro, a globalidade. Quando voltei, me perguntavam o que foi que eu aprendi e eu respondia que havia aprendido o mundo.

BM: Ao lançar O contrato natural,você disse que a reflexão política contemporânea é conduzida por pessoas que têm uma cultura hemiplégica, gente que conhece as ciências humanas, porém ignora totalmente a modernidade cultural. Como deve ser o político neste fim de século?
SERRES: O homem político em geral conhece as ciências humanas. Acontece que a maioria dos problemas atuais é resultante da aplicação de técnicas relacionadas com as chamadas “ciências duras”. Assim, por exemplo, os problemas de meio ambiente são produzidos por técnicas industriais derivadas das ciências físicas e químicas. Ora, já que uma grande parte dos dramas da modernidade depende das ciências duras, é preciso que o dirigente as conheça. Isso, aliás, é um fato inteiramente novo. Nunca antes se pediu ao homem político que tivesse tal conhecimento. Quando ele se limita a ler jornais, fica demasiadamente preso à atualidade e não tem a distância necessária para se ocupar dos problemas que só se resolvem a longo prazo, como os da educação, do meio ambiente, da criminalidade. O homem político não pode se limitar à cultura da mídia.

BM: Talvez seja necessário formar melhor a mídia.
SERRES: Não há como reformar os sistemas atuais. A única reforma possível é a da educação. Quando a humanidade tem um problema que não sabe resolver, é preciso que eduque as crianças para estas o resolverem na geração seguinte. Por isso a pedagogia é a questão fundamental no mundo inteiro.