MARIA ISABEL BARRENO

MARIA ISABEL BARRENO *

 

Há livros que a gente pode ler serenamente, deles recebendo informações mais ou menos importantes, emoções ou idéias que subitamente nos revelam algo. Há outros livros com os quais a gente dialoga todo o tempo, livros que são pré-textos, que nos lançam em outros textos que nós leitores criamos. O Papagaio e o Doutor é um livro com o qual eu dialogo. Não consigo fazer uma análise suficientemente distanciada deste romance, posso apenas comunicar as emoções da minha leitura.

Betty me deu o livro para ler, a versão francesa, e eu li na capa traduzido do brasileiro. Disse logo a Betty que língua brasileira não existe. Ela me deu uma série de razões para justificar o traduzido do brasileiro. Todas elas escondiam o autor da escolha. Seria Betty, Seriema, ou o editor francês? Almoçamos discutindo esse tema e concluímos que era preciso fazer um congresso sobre o amor e o ódio na lusofonia.

Seriema, a heroína do romance, vai a Paris para encontrar a esfinge. Aí descobre os papagaios loiros, seus compatriotas. Coincidência ou não, o papagaio loiro é o que leva as cartas de amor numa velha cantiga portuguesa…

Seriema vai à França, volta ao Brasil, vai de novo… A viagem é uma das linhas de acontecimentos que perduram até o final do livro, idas e regressos, desejos de idas e regressos, saudades. Como poderia eu não me inscrever neste percurso, nesta velha matriz que é também um território que habito?

Atrás da história de Seriema, toda a história do Brasil, história de outras imigrações e percursos, história de Portugal, único reino europeu que um dia se exportou inteiro para fora da Europa e cujo rei estabeleceu a capital no Rio de Janeiro por cerca de duas décadas. Outros acontecimentos não tivessem intervindo, Portugal ficaria sendo uma colônia britânica e o coração do reino português permaneceria para sempre no Brasil.

Curiosamente, Seriema recusa o que o Doutor lhe propõe: que seja analisada por uma sua discípula portuguesa. Como argumento, alega diferenças lexicais entre o português de Portugal e o do Brasil. Tivesse ela dito que preferia a nascente ao rio, o mestre a qualquer discípulo, eu não teria me lançado em novas deambulações que me levaram aos mitos em que a mãe é mantida prisioneira para que a filha possa fundar seu reino. Não teria chegado com isso à conclusão de que Seriema queria sua mãe ausente para melhor se confrontar com o pai.

O livro prossegue com personagens sonhadoras e loucas, contadoras de viagens, personagens que fazem percursos sonâmbulos e acordam em lugares desconhecidos sem saber exatamente por que. A busca de identidade de Seriema continua até ela reconhecer a sua recusa em nomear o pai e o seu narcisismo, o de quem procura apenas o reflexo de si no espelho do outro.

Pelo meio, como fio de tudo, entremeia o suspiro, o regresso e a pausa na língua do ão, meu território também.

O que me resta se não aconselhar a leitura de O Papagaio e o Doutor porque ele tem a força de nos introduzir nos nossos exílios pessoais.

 

 

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* Intervenção na mesa redonda sobre Le Perroquet et le Docteur, na Embaixada do Brasil em Paris, a 22 de abril de 1997, por Maria Isabel Barreno, escritora portuguesa e autora de O Senhor das Ilhas (O Campo da Palavra), entre outros.