Manhas do poder III

Manhas do poder (1979)

 

III

P: O fetichismo é uma coisa comum?
BM: Comum é exatamente o termo. Em matéria de amor, todo mundo é mais ou menos fetichista. Freud notava que um certo grau de fetichismo se encontra habitualmente no amor. Aliás, é por isso que se fala de feitiço quando se fala de amor. O termo francês fetiche se origina do português feitiço.

P: Existe algum mal real no fetichismo?
BM: Como responder à sua pergunta? O fetichismo, como perversão sexual, é uma das formas através das quais  a sexualidade se realiza. E a sexualidade, como o gosto, não se discute. Cada um gosta e goza como pode. Mas a questão do “mal” poderia ser abordada de outra forma. O parceiro do fetichista pode se encontrar em maus lençóis. Isso se evidencia, por exemplo, numa peça intitulada O fetichista, escrita por Michel Tournier, em que o personagem, um fetichista, monologa dizendo ter horror à nudez, que para ele é indecente e bestial. Para ele, um corpo sem roupa é uma árvore sem folha, sem flores, sem fruto, o corpo da mulher só lhe interessa enquanto suporte da roupa, objeto fetiche no caso.

P: Trata-se de uma espécie de doença ou de uma “estranha” preferência sexual?
BM: O fetiche é ou um objeto (uma luva, uma cinta-liga, uma meia, uma calcinha…) ou uma parte do corpo. Se recorrermos à literatura, veremos que frequentemente o ser amado é evocado através de uma peça de vestimenta. Por outro lado, a sexualidade, seja ela perversa ou não, visa uma parte do corpo e, nesse sentido, é fetichista em todas as suas formas. Agora, quando a necessidade do fetiche assume uma forma fixa e se substitui ao fim sexual comum, ou ainda, quando o fetiche se destaca de uma pessoa determinada e se torna, por si só, objeto da sexualidade, temos o fetichismo patológico. Assim, o que caracteriza a sexualidade fetichista é a presença exclusiva do que existe de fetichista na sexualidade chamada normal.

P: Por que chamada normal?
BM: Normal por visar a união dos genitais no coito. Não fosse um certo simbolismo cultural que nos força a isso, é bem possível que a sexualidade normal fosse rara. Na verdade, a sexualidade normal nada tem de natural. E se a sexualidade acaba por servir à reprodução, é porque a censura a coloca nos eixos.

P: O fetichismo é exclusivo dos homens?
BM: Em toda a literatura psicanalítica só foram descritos dois casos de fetichismo feminino. Há quem considere que o fetichismo feminino não existe.

P: O fetichismo pode ser homossexual?
BM: Tanto na homossexualidade quanto no fetichismo há uma recusa da diferença sexual. Segundo Freud, o fetiche é um substituto do pênis inexistente da mãe, falta que a criança nega. Ameaçada pela castração, a criança afasta de si a realidade da percepção de que a mulher não tem pênis. Essa negação da experiência perceptiva está na origem dos objetos substitutivos. O fetichista é aquele que recusa a realidade de que a mulher não tem pênis e inventa objetos substitutivos para esse órgão que falta, seja uma parte do corpo pouco apropriada para fins sexuais, seja um objeto inanimado que diz respeito à pessoa amada e, de preferência, ao seu sexo.
P: O fetichismo pode resultar numa espécie de satisfação egoísta?
BM: Para o fetichista, o parceiro sobretudo não deve evocar a ameaça de castração – donde as restrições que lhe são impostas, a exclusão do próprio corpo, pois este evoca a diferença dos sexos. Quanto ao feitiço, cujo uso é difundido na umbanda, ele visa suprimir o desejo do outro, fazendo vigorar um só desejo – o desejo daquele que lança mão do feitiço. O primeiro ensaio de Manhas do poder trata disso, da materialização do feitiço num centro de umbanda do Rio de Janeiro, o da Vovó Conga de Angola, cujo poder se sustenta na crença da eficácia do feitiço.

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