Manhas do poder II

Manhas do poder (1979)

 

II

P: O que explica a conduta de Don Juan?
BM: Don Juan é o ideal do ego masculino, seduz para marcar ponto e vai embora. Ter todas as mulheres é o que ele deseja e a cada vez o que conta é ter uma mulher a menos para seduzir. De certa forma, Don Juan é vítima do próprio superego, que lhe ordena imperativamente a conquista de todas. Um dia, ele comemora a conquista da milésima mulher. Só que mil é menos do que todas, e isso significa frustração para Don Juan. Nenhuma o satisfaz e ter a totalidade das mulheres é impossível. A cada uma ele dirá que ela é A Mulher, quando na verdade não há para ele nenhuma que o seja. Don Juan é internacionalíssimo, e o que diz é tão estereotipado que é fácil reconhecê-lo. Nem por isso é fácil escapar a ele, pois Don Juan responde a uma fantasia de quase todas as mulheres – fantasia que a literatura e agora a telenovela capitaliza a mais não poder, a de ser A Mulher. Só Don Juan sabe dela e é por isso que, apesar dos pesares, ele atravessou os séculos. Don Juan é um sonho feminino, e ele subsistirá enquanto perdurar a ideia de que existe A Mulher.

P: E o machismo?
BM: Donjuanismo e machismo não são a mesma coisa. Don Juan marca ponto seduzindo, conseguindo o assentimento, os “favores femininos”. Assim chamados porque é difícil dizer quem no caso é favorecido, sobretudo se se levar em conta que, em matéria de gozo, é a mulher que sempre quer mais – a que não é frígida obviamente. Aliás, o que há de insaciável nas mulheres é causa da tendência masculina a se retrair. E é aqui que entra o machismo. Ser objeto do desejo dela? Nunca! Para este retraído, desejar é privilégio masculino. Mas insistir na ideia de ter privilégios ou mérito pelo simples fato de ser deste ou daquele sexo hoje não dá mais. E um certo feminismo também peca por isso, tornando-se a imagem especular do machismo que ele critica. A hora talvez seja de acabar com os chavões, se opor ao machismo, mas para se perguntar o que é que o sustenta, quem é a mulher que precisa dele, o que ela deseja, de que interdições ou violência precisa para gozar. Assim, em vez de insistir nesses “ismos” todos de que se faz um uso cada vez mais sensacionalista, melhor seria nos ocupar de saber o que é a diferença sexual. É preciso esquecer que o macho supõe a mulher do macho, a ideologia da vingança e a paixão feminina pela Outra, que Nelson Rodrigues viu tão bem. Por não levar isso em conta, certo feminismo, adotando o modelo americano, faz da figura masculina o bode expiatório. É preciso evitar isso. Aqui, para se liberar, há que se descolonizar, recusar estereótipos produzidos por uma sociedade puritana e talvez até seja preciso assumir, enfim, as próprias inibições, ser como se é, insistir nisso.

P: Você é contra o feminismo?
BM: Vejo nele contras e prós. Apesar das críticas que podemos fazer, o feminismo dá a oportunidade para que se produza um discurso em que a diferença sexual seja o tema, para que os homens possam falar de si como sujeitos sexuados e assumir, enfim, o desejo legítimo de ser, como as mulheres, objeto sexual. Não acha?

P: É verdade que a média dos homens na atualidade é composta de impotentes? Impotentes com relação à pessoa que ama, conseguindo apenas funcionar com mulheres que ele despreza? O que seria isso? Um surto de complexos de Édipo?
BM: Francamente, não acredito que a média dos homens seja de impotentes. A verdade estatística, entretanto, eu desconheço. Quanto à divisão entre a mulher amada, venerada, intocável e, por outro lado, aquela com quem o pau come, isso é um fato. Freud abordou o tema referindo-se à tendência masculina de separar ternura e gozo, de modo a torná-los exclusivos. É claro que o Édipo explica isso, a mulher amada simbolizando a mãe interditada. Mas e o tabu da virgindade? a educação que só serve para reforçar aquela tendência? A cultura bipartiu a mulher entre a mãe e a puta, entre a procriadora e a Outra, para dividir ainda mais os homens e controlar melhor as mulheres.

P: Até onde a culpa da crise masculina pode ser atribuída à mulher?
BM: Não acho que seja uma questão de culpa. O que há é um mal-estar que afeta os dois sexos, o homem não podendo de fato transar com quem ama, e a mulher precisando da transa para se sentir amada. A crise é dos dois sexos desde que o casamento deixou de ser casamento de interesse para ser de amor. Desde então, casal feliz é como a camisa do homem feliz. Não se encontra. Como conciliar Eros e o compromisso institucional? Em matéria de paixão, o seguro não existe. É uma ideia tão louca quanto a de morrer curado.

P: Quais são as perspectivas para o homem do ano 2000?
BM: Eu não sou vidente, mas, sem esperar nada, gostaria que cada um de nós soubesse mais e mais o que deseja e não se deixasse mistificar. Que se pudesse superar a inimizade entre os sexos, tão cultuada aqui no Brasil, onde as diferenças ainda são resolvidas a tiro ou a punhaladas e a vingança é um critério de honra. Saber mais de si, assumir o peso da liberdade e se autogerir. Essa é a minha utopia para o ano 2000.

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“E fala a mulher, doutora no assunto”. Revista Status, no 79, fevereiro, 1981.