A Mãe Eterna I

Longevidade em xeque

P: Em que circunstâncias você escreveu A mãe eterna, quanto tempo demorou da ideia original ao texto final e que avaliação faz da experiência de escrevê-lo?

BM: Não sei de quando exatamente data a primeira tentativa. Talvez de três anos. Sei que, logo depois, eu comecei a trocar idéias com dois amigos, um neurologista e uma psicanalista, porque precisava me informar sobre o que estava acontecendo com minha mãe, que, de repente, envelheceu. Continuava lúcida, mas com dificuldades cada vez maiores de andar, ouvir e enxeragar. E, o que é pior, não aceitava nenhum dos limites que a velhice impõe. Não aceitava, porque nada é mais importante para o velho do que manter sua independência. Isso fez dela uma senhora tão perigosa para si mesma quanto engraçada, que me inspirou a escrever o romance. Graças aos amigos, eu me dei conta do quão importante era escrever sobre o que eu estava vivendo – a passagem da condição de filha para a de mãe da mãe. Importante porque, além de escritora, eu sou médica e psicanalista e tinha a possibilidade, graças à minha experiência, de revelar algo novo. O texto foi se escrevendo ao mesmo tempo que eu ia estudando as questões relativas à longevidade e ao prolongamento da vida pelos médicos.

 

P: Como você distingue e define a tarefa de se dedicar à ficção, sobretudo se lembrarmos que o seu trabalho como ensaísta e pensadora tem uma voz tão peculiar?

BM: Há certas coisas que só podem ser ditas através da ficção. Não somente para que o escritor possa escapar à censura, mas ainda porque só a forma ficcional permite dizê-las. Me fizeram a mesma pergunta que você está me fazendo quando eu escrevi O Papagaio e o Doutor , cujo texto me levou a descobrir que ninguém escapa aos efeitos do inconsciente, nem mesmo o maior dos analistas. Por isso, aliás, o texto que se inspira na minha análise com Lacan foi censurado na França e só foi publicado lá um bom tempo depois de lançado no Brasil. A escrita ficcional é diferente da ensaística, porque, para o verdadeiro ficcionista – que é parente próximo do poeta –, a revelação é essencial.

 

P: Como definiria a personagem Ana Lúcia e o que pensa sobre a ideia quase instintiva (e nada nova) de o leitor associar a narradora à figura da autora, algo como o “alter ego de Betty”?

BM: Todos os meus romances são inspirados na minha experiência, mas diferem dela porque são metáforas da vida, revelam o que está encoberto na vida, na minha e na dos outros. Mesmo que o meu ponto de partida não fosse a minha própria experiência,  eu teria que me basear nela para dar vida ao meu personagem. Por esta razão, o escritor tem que se conhecer. Como, aliás, o ator.

 

P: “Liberdade para cair, tropeçar e se machucar” é uma fala, como outras tantas, forte e contundente no livro. Como observa, na vida real, a liberdade na velhice? É algo possível e/ou viável?

BM: O grande problema é que o velho quer ser independente, mas não tem as condições físicas e mentais para sê-lo. Para não ser cruel com ele, é preciso ser maneiro, aprender a driblar e até mesmo mentir para apaziguá-lo quando ele se enfurece por não conseguir o que quer. Não se trata de castrar o velho, mas de reorientá-lo para que ele possa aceitar os limites que a realidade impõe.

 

P: O que pode ser transformador ao tratar de uma questão tão ancestral – o vínculo materno – na literatura ou na arte? A mãe eterna tranformou você?

BM: A mae eterna me ensinou a aceitar a perda da mãe que eu tive e já não tenho. A literatura ilumina a realidade, porque o escritor se desdobra e se debruça sobre ela. A mãe eterna nasceu de um desdobramento entre a mãe atual e a mãe imaginária, a quem a narradora conta o seu drama. Acho que eu acertei na estrutura do livro, que se impôs logo de saída. Acertei aceitando o que se impunha. Dizem que de todos os meus livros, que são 26, este é o melhor. Mas eu acho que o melhor é o próximo. Se eu não achasse isso, o que seria de mim?

 

P: Como a sua formação e as suas percepções de psicanalista aparecem neste trabalho ficcional?

BM: Aparecem, porque eu observei como médica e escutei como analista. Foi particularmente difícil, por se tratar da minha relação com a minha mãe. Me lembro de uma colega que me aconselhou a abrir mão do tema, e eu só não fiz isso porque não pude. Tive que ir em frente.

 

P: A frase “morrer é um direito” é destacada no livro. O que pensa sobre discussões e legislações que legitimam e respeitam, com parâmetros legais, essa decisão e esse direito?

BM: Sou tão contrária à obsessão terapêutica quanto favorável ao suicídio assistido, que pode humanizar o nosso fim. Que fim pode ser melhor do que ir embora deste mundo graças à ação de um médico amigo que nos ajude a morrer? Não tive a liberdade de nascer, mas a de morrer eu quero ter. Os antigos procuravam o elixir da vida. Seria bom se nós agora tivéssemos o elixir da morte à nossa disposição. Ficaria mais feliz se tivesse certeza de que não seria obrigada a viver sem memória ou a viver como um vegetal.

 

P: Como você lida com ideia da finitude, da morte?

BM: Acredito que já tenha respondido a esta questão. Estou preparada para morrer. Como diz Norbert Elias, autor de A solidão dos moribundos, a morte não é nada. Terríve é a perda. Sobre ela, eu escrevi longamente no meu romance Consolação.

 

P: Quatro anos atrás, falamos do que você identifica como “ato desprestigiado de escrever”. Mudou alguma coisa desde então? Para melhor ou para pior? Por quê?

BM: O escritor no Brasil é desprestigiado. Mas a verdade é que eu não me importo com isso. Do contrário, não teria escrito tantos livros. Talvez eu devesse ter mudado de língua, mas não foi possível, por causa do prazer de escrever na língua portuguesa do Brasil.

 

P: Com a vida e a identidade tão ligadas a França e a Paris, o que, na sua opinião, mudou na cidade e no país depois dos bárbaros atentados do final do ano passado?

BM: Paris deixou de ser o meu quintal. Sei bem que os parisienses continuam a fazer exatamente o que faziam antes. Mas, depois do atentado do 11 de novembro, não há como não ter medo de outro. Enquanto a situação do Oriente Médio não se resolver, Paris não será mais a cidade da liberdade, e o parisiense não estará em casa.

 

P: Como profissional cuja notoriedade veio também pela atuação na imprensa, qual a sua percepção do jornalismo praticado atualmente?

BM: Nunca concebi a possibilidade de estar fora da imprensa. Acho que, no Brasil, ela tem a maior importância. O que seria de nós sem o que a imprensa está fazendo neste momento? Sem a coragem dos jornalistas?

 

P: O que pensa sobre o contexto social, político e econômico brasileiro num momento tão tumultuado e confuso?

BM: Como todos, eu estou esperando esta loucura passar. Nunca na minha vida foi pior. Mas eu acho que a mentira é tanta que nós estamos mais comprometidos com a verdade.

 

P: Em que outros projetos você trabalha atualmente?

BM: No momento, eu tenho vários lançamentos da Mãe eterna pela frente, inclusive em Lisboa. Depois de respirar um pouco, vou retomar o romance que estava tentando escrever antes deste, que está sendo lançado, se impor.

 

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Sobre A mãe eterna (2016)

Texto original (sem edição) de entrevista concedida a Sérgio Ribas, revista Vila Cultural, Livraria da Vila, São Paulo, março de 2016.