DEONÍSIO DA SILVA

DEONÍSIO DA SILVA (1)

 

Faz muito tempo que a Literatura chegou ao Inconsciente. De todo modo, bem antes de Freud ou Lacan. Que esperar pois de uma escritora, que é também psicanalista, quando se põe a escrever um romance cujo tema preferencial situa-se no Inconsciente? Quando a autora é Betty Milan, ex-analisanda do grande e polêmico Lacan, o sentimento mínimo que o leitor vê despontar dentro de si é o da curiosidade.

O domínio conexo mais próximo do tema escolhido situa-se nas tramas da linguagem. E também em suas trapaças, obviamente. Já pelo título, o leitor entra de olho armado. Com efeito, O Papagaio e o Doutor alude preliminarmente a duas figuras para quem a linguagem não é uma forma inocente que traz um conteúdo neutro. O Papagaio fala, ou, aliás, repete o já falado. O Doutor é aquele que ouve profissionalmente, com o projeto declarado de identificar na fala do Papagaio as neuroses que o vitimam e denunciam.

“Por onde no entanto começar. O Doutor teria me dito imperativamente que o fizesse: — Diga, minha cara” (2), declara a narradora na abertura do romance. Abrir uma narrativa tem sido um problema milenar, a ponto de a sabedoria popular ter inventado as chamadas formas fixas — “Era uma vez” — para driblar a notória afasia que toma conta do fabulista, por exemplo, num conto de fadas.

No romance de Betty Milan, Seriema não vê outro modo de começar, a não ser narrando. E é o que fará ao longo das páginas que compõem este romance ousado e desconcertante, que desafia o leitor, levando-o, mais por sedução do que por convite, a repor as coisas para exame a partir de outros mirantes.

Entre o Doutor Xan e Seriema instala-se, de saída, um problema de difícil solução, dada a metodologia em causa na cura analítica. Se a fala é elemento essencial no tratamento, como proceder, se o Doutor fala francês e Seriema português? Existe pois a barreira da língua, precedida da hegemonia cultural do mundo do Doutor sobre o Terceiro Mundo, de onde saiu Seriema. “Mas eu lá estaria para traduzir”(3), vai avisando a personagem que detém os poderes da narração e instala, já na primeira página, um aviso aos bons entendedores: quem conta é ela. A versão dos eventos é portanto de Seriema.

Mesmo procedendo de um modo pouco usual, Xan e Seriema seguem à risca o antigo preceito do Ocidente, que estabelece vínculos de fogo com as origens. Soa, então, metafórica a alusão à Carta de Pero Vaz, quando a narradora declara que o Doutor recebeu “sonhando com uma terra de bons ares e águas infindas, onde em se plantando tudo dá e o melhor fruto seria a instrução de sua gente” (4) e que seria “lógico” supor que não haveria ninguém melhor para “emissário” do Doutor do que “um nativo fiel à metrópole”. Em seu rastreamento, Seriema encontra uma dupla origem: a do país de onde vem e a sua própria, fincada lá nos começos da imigração dos “turcos”, dos que deixaram o Cedro e vieram buscar o paraíso no Brasil, vislumbrado num lugar aprazível — não mais para agriculturas e pastoreios, mas para o comércio, uma terra onde basta oferecer que todos compram de tudo: algodão seda, tafetá, agulha, linha, tesoura, canela, cravo, manjericão, boneca, almofada tinteiro, peteca e fuzil.

Os ancestrais de Seriema buscaram o Brasil, mas para ela, duas gerações depois, a felicidade pode estar em Paris e é lá que se passam os principais eventos do romance. Uma tese de doutoramento e as confissões ao Doutor Xan vão ocupar o tempo de Seriema na cidade-luz, onde as trevas perduram nas sessões psicanalíticas, postergando-se o “claro raio ordenador” mais para o final do tratamento e da estadia.

Mas quem é o narrador do romance?, temos de perguntar, já que a versão dos acontecimentos é dada pela própria Seriema através da confissão que ela faz a seus leitores. O narrador é uma mulher que se profissionalizou (com a tese) e se curou (com o tratamento).

A narrativa de Betty Milan tem um encanto peculiar, que é o dos temas de que ela se ocupa. Tal como nas outras novelas, O Sexophuro — já objeto de tese definida na USP — e A Paixão de Lia, O Papagaio e o Doutor dá pistas de uma formidável pesquisa que precedeu o percurso da escritora até seu tema e suas tramas. Até os nomes das personagens estão escolhidos com vistas a ampliar e polissemizar a significação. Xan significa pequena montanha em chinês, e o Líbano, pátria dos ancestrais da heroína, é chamado de Pequena Montanha. Seriema tem sua etimologia ligada a uma ave de “crista em pé”, sem contar a lembrança do verso popular: “Seriema, teu canto triste me faz chorar”.

Quem mexe no Inconsciente encontra lá o desejo, que está em toda parte, como um Deus; topa na sexualidade e, por isso, o romance de Betty Milan termina com uma Seriema sem traumas que emerge das tramas em que a vida a envolveu com o próposito declarado de romper com as duas alternativas que lhe estavam destinadas: odalisca ou Isolda. “Nem odalisca para servir, nem dama para que me sirvas, nem a circunvolução da concupiscência, nem a tristeza do pedestal.” (5)

Temos, no fim de seus relatos e de suas duplas sessões — com o Doutor e com os leitores —, uma persona para quem a Literatura foi melhor remédio do que a Psicanálise, ou, pelo menos, exerceu uma cooperação essencial, pois a narradora conclui que a ela sobretudo importa a língua materna e o país desta língua.

Com este romance, Betty Milan dá um toque sutil de modernidade em nossa prosa de ficção contemporânea, ainda muito afeita ao documental, procura examinar a partir de outros lugares os problemas que nos afligem, situando-nos de um modo diferente e levando o brasileiro a contemplar-se no espelho do mundo e não apenas naqueles limites do nosso Terceiro Mundo. Lembra-nos, assim, que o espelho é cheio de sutis complexidades e que não basta ao escritor deste fim de século e de milênio contentar-se em ser fotógrafo do real. Em sua ficção, o desejo, a sexualidade, a linguagem, não se constituem apenas em temas preferenciais, mas vão mais além, condicionando o modo de narrar.

Betty Milan não faz disso um modismo. Ao contrário, sua narrativa mostra que o bom ficcionista só consegue escrever bem sobre o tema que conhece, aludindo, por ínvios caminhos, a um mínimo de competência profissional. Com efeito, se nem os bandidos podem se dar ao luxo de serem amadores, por que o escritor estaria isento dessa condição nova, que é o aprimoramento da especialidade?

Conciliar uma escritura de saber com uma leitura de prazer será o dilema, pois o atual habitante da Galáxia de Gutemberg não é nenhum tonto, nem é lícito ao escritor supor que ele seja. Restará o risco de não ser entendido, sobretudo por aqueles formadores de opinião que ainda mantêm a deformação profissional de julgar sem maior trabalho qualquer produção cultural.

Se o escritor, para escrever seu romance, deu-se ao cuidado de pesquisas e trabalhos ingentes, como é que o comentarista haveria de ter, por obra e graça de tênues poderes eventuais, licença especial para matar qualquer texto, sem qualificação específica que lhe assegure, não apenas direitos, mas também obrigações diante do público leitor e dos autores?

Nenhum comentário, então, poderá sustentar-se a partir de um apagamento do autor e de sua obra. Pluralidades divergentes caracterizam sociedades democráticas. Por que, então, a ditadura do intérprete que comenta como se tivesse sido servido por uma espécie de revelação, que o eximiu de trabalhar para ler?

 

 

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(1) Texto  de Deonísio da Silva, professor da Universidade Federal de São Carlos, escritor e autor de Avante soldados: para trás (Sicilano), entre outros.

(2) MILAN, Betty. O Papagaio e o Doutor. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 9.

(3) Id. Ibid., p. 9.

(4) Id. Ibid., p. 9.

(5) Id. Ibid., p. 177.