De Paris, um amante brasileiro

De Paris, um amante brasileiro

 

Deonísio da Silva (1)

A internet tomou conta de nossa vida e é quase impossível viver sem ela. É verdade que nada substitui a emoção de escrever e receber uma carta, principalmente se de amor, mas as mensagens eletrônicas voam como pássaros e aposentaram o fax e o telex de muitas de suas antigas tarefas.

Era natural, pois, que nossas letras refletissem os novos tempos. Semelhando Ligações perigosas, famoso romance francês do século XVIII, O amante brasileiro, da psicanalista e romancista Betty Milan, que divide seu tempo entre São Paulo e Paris, irrompe como autêntica novidade na cena brasileira, retomando a via epistolar do modo mais moderno possível: o aproveitamento do e-mail para estruturar a narrativa.

Choderlos de Laclos situou Ligações perigosas em fins do século XVIII, às vésperas da Revolução Francesa. Transposto para o cinema, o livro ganhou enxurrada de novos leitores. Afinal, há muita gente boa que confunde Cleópatra com Elizabeth Taylor e Moisés com Charlton Heston. E, especificamente no Brasil, Dona Flor e Gabriela, não fosse a atriz Sonia Braga, talvez não tivessem frequentado tantos lares, mais do que bibliotecas ou livrarias. E Jorge Amado morreu feliz com a vida que suas criaturas tiveram depois dos respectivos livros.

O resumo de Ligações perigosas pode ser visto assim: a Marquesa de Merteuil precisa de um favor do seu ex-amante, o Visconde de Valmont. Seu ex-marido quer casar com uma jovem ainda virgem e ela deseja que o visconde, conhecido por suas conquistas amorosas e vida dissoluta, seduza a menina antes do dia do casamento. O amigo, porém, tem outra prioridade: conquistar uma mulher casada, bonita, religiosa e fiel ao marido.

Segue-se uma sucessão de cartas, pois a marquesa solicitou prova escrita dos eventos amorosos, prometendo que, se ele conseguir tal façanha, passarão uma noite juntos. Os processos de sedução, porém, ganham autonomia e os resultados obtidos surpreendem pelo tom trágico.

Pois Betty Milan, que tem posição original em nossas letras exatamente por fugir ao documental, apelando para o onírico e com isso renovando nossa prosa de ficção, desta vez apelou para a internet. Clara e Sébastien, os dois protagonistas, vivem um amor cujo traço mais marcante é a delicadeza. Esta é a grande diferença entre o romance francês e o da brasileira. Laclos centrou sua narrativa nos ardores da paixão. Betty Milan, ao contrário, dá valor decisivo ao entendimento entre os amantes, pondo-o, inclusive, acima do gozo.

Outras mensagens, trocadas por outros casais, iluminam o caso de Sébastien e de Clara. E naturalmente aqui e ali soam traços biográficos, como quando a narradora diz que há alguns anos um editor pediu-lhe que escrevesse um livro sobre o que é o amor e que ela recusou: ”Quem pode definir o amor? Quem pode enquadrar numa ou noutra definição este sentimento vivido por cada pessoa de maneira diferente?”. Na vida real, Betty Milan escreveu o livro O que é o amor, que teve boa acolhida de crítica e público.

O grande público dá a impressão de descaso diante da literatura brasileira. Mas nossos romancistas se preocupam com o grande público? Betty Milan responde à pergunta com mais um romance. O grande público, inexistindo no Brasil, a não ser em outra medida, bem mais restrita do que na França, está por certo navegando em águas da internet.

A romancista interessou-se pelas mensagens eletrônicas. O leitor quem sabe estará refletido nesta bela imagem: ”Você foi o simulacro de um amado que eu não sabia nomear e você teve a inteligência de não se opor à minha fantasia, me deu liberdade de imaginar”.

Com efeito, o que a internet mais faz é dar asas à liberdade dos navegantes. E dos amantes.

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1. Deonísio da Silva, escritor e professor universitário, é doutor em letras pela USP. Entre seus livros mais conhecidos, publicados também em outros países, estão Avante, soldados: para trás (Prêmio Internacional Casa de las Americas), Teresa (premiado pela Biblioteca Nacional e transposto para teatro) e Os guerreiros do campo. Jornal do Brasil, 25/11/2003.