Cintilação universal

Cintilação universal

 

Fernando Nuno (1)

Quando Betty Milan cometeu a impudência de me chamar para dizer estas palavras sobre quando Paris cintila, minha primeira sensação foi a de estar na pele de William Holden no filme Quando Paris alucina, em que ele parecia ter um dilema semelhante ao meu. No filme, ele faz o papel de um escritor indisciplinado que tem de entregar um roteiro de cinema e adia continuamente o prazo. Pensei que o mesmo fosse acontecer comigo. Mas que nada! Bastou começar a ler as provas de edição do livro e senti que a Betty tinha me facilitado o desafio. À parte o fato de que Audrey Hepburn está soberba na tela e Betty Milan está cada vez mais esplêndida no desempenho com a palavra impressa, as possíveis semelhanças entre Quando Paris alucina e quando Paris cintila param por aí. Mas essa foi a primeira viagem que o livro me propiciou.

Esgotada assim a referência cinematográfica, restaram-me as duas remissões literárias que me ocorreram de imediato. A primeira é esta: grande leitora de Machado de Assis, a Betty logo se lembrará da frase “O viajante põe, e Paris dispõe”, que o nosso maior autor colocou num de seus contos (chamado “Mariana”). E, se Paris dispõe, para constatar como fica essa disposição na pena de Betty, vamos direto às páginas de quando Paris cintila. Começo a ler o livro e já na primeira frase deparo com a afirmação admirável: “para ir bem longe, não é preciso caminhar muito”. Sim, a obra de Betty cumpre essa declaração do princípio, mas não sem antes me levar a uma segunda referência literária – é a última, prometo –, que é um dos primeiros clássicos da literatura moderna: a obra de Xavier de Maistre, Viagem à roda do meu quarto.

De Maistre é um dos maiores mestres de Machado de Assis. Em seu livro, De Maistre nos leva a fazer uma grande viagem, de 42 dias, sem sair do quarto. Numa das etapas do trajeto, ele nos apresenta as pinturas que tem nas paredes. No caminho, nos convida a examinar atentamente o melhor de todos os quadros, aquele que supera “as obras mestras de Rafael, de Correggio e de toda a Escola da Itália”. De Maistre se refere a um espelho. Que quadro é melhor?, pergunta ele. Qual o mais realista e mais cheio de imaginação do que a fiel representação de nós próprios, o único, entre nossos amigos e conselheiros, que nos diz a verdade verdadeira, nos mostra nossas rosas e rugas?

Pois bem. Em quando Paris cintila, Betty Milan nos leva a ver o espelho em que vemos a nós próprios e ao mundo. Pois logo notamos que, com o espelho, ela nos mostra também novas janelas, novas portas inusitadas. Capítulo por capítulo do livro – todos escritos de tal forma que podem ser lidos como poesias, em linhas sem ponto nem inicial maiúscula –, ela vai abrindo as cortinas que se estendiam sobre essas janelas e portas antes insuspeitadas. Na mala de viagem, sob as etiquetas de Istambul, Estocolmo, Ouro Preto, Índia, China, São João del Rei e Paris, encontra-se o mundo. De quebra, ainda nos leva ao ateliê do Doidão, na Praia do Forte. Ele sabe fazer esculturas de Santo Antônio que têm aura.

Os lugares referidos são universalizados; Betty encontra no detalhe particular a universalidade que nos separa e que pode nos ela demonstra neste livro: mais que ser simples e excelente observadora de lugares, fatos e pessoas, ela sabe se pôr no lugar do outro, consegue viver suas dores e alegrias para compreendê-las melhor – e fazer que nós, leitores, o consigamos também, de forma singela.

Betty comove e vai ao âmago da questão: os dez dinares que saem de nossa mão para a do engraxate da mesquita que está ajoelhado a nossos pés a lustrar-nos o sapato enquanto estamos refestelados num banco. Esses dez dinares não são os mesmos quando chegam às mãos daquele homem que precisa comprar uma prótese para o filho que anda de muleta. É quando Betty cintila. Betty se coloca no papel do engraxate, assim como observa, revela e vive o do cego, o do velho, o da cantora de tango de Dunquerque, entra na pele do casal de amantes.

Preciosas observações entremeiam o texto, como “de repente percebemos que a vida não dá garantia”, ou quando ela propõe “contornar a anormalidade como faz o guerrilheiro com o exército inimigo”. São muitas as epifanias desse tipo, não me compete repeti-las, vocês as lerão.

Se o livro começa com “para ir bem longe, não é preciso caminhar muito”, o último texto se inicia, coerentemente, com “não é preciso sair do lugar para ir à China”. A prova é que, embora sejam tantos os aspectos a mencionar deste livro, apesar das tão poucas páginas que tem, evitei tocar em dois de seus tópicos mais importantes. Eles serão desenvolvidos agora por Mestre Fang.

Depois dele, Zé Celso Martinez Corrêa, com sua expressividade, vai conferir a significação devida a alguns trechos mais marcantes de quando Paris cintila. Então, veremos que Paris é um símbolo. Na palavra de Betty, o mundo inteiro cintila – iluminando a todos nós.

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1. Fernando Nuno é escritor, músico e editor. Entre várias obras, publicou Antônio, o santo do amor. Palestra realizada no lançamento do livro quando Paris cintila. Livraria Cultura, São Paulo, 18/03/2008.