Cidade de letras

Cidade de letras

 

Prepare-se para uma viagem que dá voltas com o tempo e inaugura um novo relógio de areia, suspenso dos ponteiros cotidianos. Esse tempo único tem um nome: Paris. É na cidade-luz eternamente presente nos corações apaixonados, nas linhas e letras dos escritores, que a psicanalista e escritora Betty Milan, autora de O Papagaio e o Doutor e E o que é amor?, encontra sua personagem. Betty, que já estudou com o psicanalista francês Jacques Lacan, vê aspectos inusitados na cidade, que é berço de tantas histórias imortalizadas pela pena de escritores como Victor Hugo, James Joyce ou Gertrude Stein.

A psicanalista, que tem nas veias o sangue quente dos jornalistas e constantemente faz entrevistas com intelectuais, mudou de lado e agora dá uma entrevista por fax ao Caderno de Sábado sobre a sua obra, publicada em capítulos pelo Jornal da Tarde entre 4 de fevereiro e 19 de agosto do ano passado [1995].

Passeando pelas páginas recheadas de histórias de seu livro, é possível encontrar desde uma famosa boulangerie até a casa em que Vitor Hugo morou. Cenas cotidianas se sucedem com a rapidez da metrópole cantada por Baudelaire. Os cantores bolivianos no metrô, a moda e sua obsessão parisiense, os eternos cachorros nos restaurantes que não aceitam crianças são algumas cenas pitorescas que a autora revela ao leitor com a perspicácia de estrangeira em uma terra de sonho.

Os 29 capítulos do livro ajudam o turista ou o leitor que gosta de viajar pelas páginas de livros a descobrir pequenos segredos da cidade. Nesse sentido, é um livro de viagens. Mas não só. A rápida visão da autora, inspirada pelo mestre Hemingway de Paris é uma festa, possui a eterna curiosidade dos repórteres. Capta coloridos e formas da cidade.

P: Você mora em Paris desde 1974. Seu livro Paris não acaba nunca foi sendo construído durante todo esse tempo ou essa é uma ideia mais recente?
BM: O livro é o produto de longa errância através da cidade. Antes de ter constituído família em Paris, morei lá sozinha e saía muito para andar pelas ruas. Mas escrever mesmo foi quando um membro da família francesa adoeceu e eu me disse que a cidade que até então havia sido ótima ia ficar péssima, a bela Paris ia acabar. Escrevi como quem se despede e, paradoxalmente, fui feliz. Revi lugares que conhecia e procurei me informar mais sobre a história da cidade. Descobri coisas inteiramente novas, relativas à arquitetura, à pintura, à literatura e à gastronomia, um capítulo que eu aliás privilegio no livro. A escrita me permitiu ver o que eu antes não enxergava; descortinou cenas novas. Quando passei a escrever a segunda parte do livro, o Jornal da Tarde já estava editando a primeira e isso foi particularmente estimulante.

P: O crítico de arte italiano Giulio Carlo Argan já comparou Paris com uma obra de arte. No seu livro, ela é representada como um misto entre a festa descrita por Hemingway e o sonho do olhar estrangeiro. Para você, Paris se torna personagem, não?
BM: Numa das crônicas, eu digo que Paris é uma obra de arte e acrescento que ela atrai os artistas por isso. Quem escreveu que Paris é uma festa foi o Hemingway, e não eu. Paris pode ser até muito triste, como qualquer outro lugar do mundo, mas o que interessa é que ela não acaba nunca e deixa sempre a gente na posição de quem quer ver mais e ainda. São miríades de igrejas, de quadros, de jardins, de restaurantes e de bistrôs. Paris é como Xerezade, promete toda noite uma história nova. Mas, para descobrir isso, é preciso de tempo. É certo dizer que fiz da cidade uma personagem em torno da qual orbito. Ela já havia sido cenário das obras de muitos escritores: Victor Hugo (Notre-Dame de Paris), Breton (Nadja), Aragon (O camponês de Paris), Hemingway (Paris é uma festa)…

P: Você privilegiou escritores estrangeiros que viam a cidade com um olhar de fora. Foi uma escolha consciente, já que esta é também a sua visão sobre a Cidade Luz?
BM: Eu certamente privilegiei os escritores estrangeiros por ser uma estrangeira e saber profundamente desta condição, ainda que tenha marido e filho franceses. A condição que durante anos foi incômoda de repente se tornou um verdadeiro trunfo, eu me dei conta de que podia ver o que os franceses não viam. Do cocô nas ruas às particularidades no modo de receber, cozinhar, comer. Com olhos e ouvidos de brasileira, eu estava mais armada para descobri-los. Não há nisso, aliás, nada de excepcional. Alguns dos melhores livros escritos sobre o Brasil foram escritos por estrangeiros: Debret, Saint-Hilaire, Rugendas, Lévi-Straus. Com o estranhamento, a gente vai mais longe na descoberta do outro, desde que possa não se sentir perseguido. Num certo sentido, o meu livro é uma apologia do cosmopolitismo, que também é uma tradição paulista.

P: A metrópole, tal como a conhecemos hoje, surgiu no final do século 18 e desenvolveu-se durante o século 19, como descreve Richard Sennet no seu livro O público e o privado. Ela, portanto, sempre esteve muito ligada ao processo criativo dos escritores que escolheram a modernidade e a vanguarda. Baudelaire, Rimbaud, Dickens e, na virada do século, Gertrude Stein, Breton, Apollinaire louvaram o moderno através dos labirintos escondidos, das ruas tortas e das fachadas de casas antigas. Fale um pouco mais sobre essa relação entre os escritores e a cidade…
BM: Paris desde sempre amou os escritores, que ela evoca através de estátuas, museus, placas, nomes de ruas, restaurantes e cafés. A cidade também foi muito amada pelos escritores. Entre os paulistas, quem melhor a cantou foi Oswald de Andrade. Há um poema em que ele declara voltar sempre para o Brasil contrabandeando saudades de Paris. Confesso que não li todos os autores que escreveram sobre Paris – eu, aliás, nunca faço estudos exaustivos sobre o que quer que seja, procuro, sim, olhar e ouvir exaustivamente. Mas Baudelaire e Breton formam duas referências importantes. Baudelaire, porque também para ele a cidade era uma droga que propiciava o esquecimento. Breton, porque o grande livro dele, Nadja, é o resultado de uma errância pela cidade. E há outro autor, que você não mencionou, que foi uma referência permanente: Victor Hugo. É impossível olhar para as torres de Notre-Dame sem imaginar o corcunda tocando o sino ou montado sobre ele.

P: Em algumas passagens, você parece esquecer todos os graves problemas das grandes metrópoles hoje. A questão étnica e racial, por exemplo, não aparece no livro. Esta foi uma escolha proposital ou esse aspecto lhe chamou menos a atenção?
BM: Olha, eu tenho um filho de 13 anos que vai à escola em Paris e todo dia tem que evitar os lugares onde poderia sofrer violência física. Metrô, ele procura não tomar, por causa dos tantos atentados. Mas isso agora acontece no mundo inteiro, no World Trade Center ou em Buenos Aires, e a imprensa jornalística e televisiva dá conta do terror e do medo. A Paris que me interessava é a que favorece os artistas, os escritores e as pessoas que querem passear e com isso se descobrir. O meu livro também é uma apologia do passeio. Por que não? Se der sorte, ainda vou passear muito, porque Paris não acaba nunca e quanto mais eu escrevo mais eu vejo.

P: A forma como você escreve o livro, com parágrafos curtos, sem pontuação, impõe um ritmo inusitado à narrativa e isso de certa forma lembra o ritmo da metrópole…
BM: Não havia pensado na relação entre a metrópole e o estilo do meu texto, porque sempre escrevi cartas sem parágrafos, contendo sentenças sem maiúsculas ou ponto final. Inventei, ao longo dos anos, uma maneira própria de pontuar, que, supostamente, deu certo. Mas faz sentido pensar na relação que você sugere, porque, na metrópole, a gente tem experiências que se impõem isoladamente – é a visão de um arranha-céu; de uma árvore que resistiu às tantas investidas dos citadinos contra sua espécie; de um menino com várias cicatrizes no rosto, que ganha o seu pão vendendo bala na rua; ou de um mendigo de preto em quem a gente, na calada da noite, quase tropeça. São visões sempre surpreendentes e que, de imediato, não se articulam. Escrevi de modo a restituir essa experiência. Quero que o leitor possa errar pelo texto e, com ele, se surpreender. O que interessa passar é a emoção (1).

_______________
1. Jornal da Tarde, São Paulo, Caderno de Sábado, p. 2, 2/03/1996.