CELSO GUTFREIND

CELSO GUTFREIND *

 

É recente a edição de O Papagaio e o Doutor, de Betty Milan (editora Record, 1998). Na verdade, trata-se de uma segunda versão (revista, avisa a autora), datando a primeira de 1991. Mas já se tem aqui dados demais, nomes demais.

Até os prosadores dizem que uma prosa não consegue ser pura. Tem sempre nela uns arranhões de ocorrências, umas ações a mais que o ritmo da vida em si, outros arranhões de referências nada nuas e nem cruas. Políticas, filosofias, épocas até. Que a afastam da pureza mais ou menos absoluta de outras linguagens, como por exemplo — e sem sair da palavra — a poesia. Há outras, mais próximas do puro, e pensando nelas me vêm à mente palavras de prosadores. João Gilberto Noll coloca a música acima de todas as artes e acima daquela a que se dedica. Ele, que volta e meia lamenta a desistência de uma carreira como cantor (lírico). Julio Cortazar valorizava a poesia das prosas e lançou a hipótese de que a necessidade constante e insaciável do poético andava, ultimamente, encontrando seu alívio mais na prosa que na poesia em si. Talvez a culpa fosse dessa última, que andava tão hermética, tão complicada, tão para poucos.

Verdade que bons prosadores sempre transcenderam tal tendência. Há exemplos em toda parte, o Brasil é rico deles: Clarice Lispector em sua prosa mais que poética, Guimarães Rosa, esse poeta. Veio também de Clarice, no seu romance derradeiro, Água Viva, a síntese do que a literatura vem tentando desde que Joyce, Mallarmé e Kafka (entre outros) a fizeram moderna: “gênero não me pega mais”.

A questão aqui não é discutir o gênero, muito menos clivar prosa e poesia. A questão é talvez nenhuma, e em breve chegaremos lá.

Digo talvez nenhuma, pois basta reler as poucas linhas já escritas para sabermos que não sabemos muito bem. Estamos no etéreo de Cecília Meireles, no aberto de Umberto Eco, na falta de nomes, no ritmo da vida, com poucos arranhões de questões. Na poesia?

O Papagaio e o Doutor narra a saga de Seriema. Na busca teimosa do gênero, estamos entre a epopéia (mas de simples heróis) e o romance de aprendizado, de formação. Seriema é filha de libaneses, mas natural de Açu. Açu é um lugar tropical, que sofre e brinca muito, onde tem mulatas, carnaval, futebol e muito mais. Seriema forma-se em medicina, ensaia uma formação psicanalítica em sua terra natal mas vai a Paris submeter-se a uma psicanálise com o doutor. O doutor, com suas idéias próprias, rompeu com a “multinacional” da psicanálise (sediada na Inglaterra e com sucursais no mundo todo) e inventou seu próprio jeito de lidar com o caldo, no seu próprio país. Em um primeiro momento, o doutor tenta encaminhar Seriema a uma doutora de Jaçu, estranho país que, embora fale o mesmo idioma de Açu, chama de pequeno-almoço seu café e de putos os seus meninos. Romance autobiográfico? Açu-Brasil? Jaçu-Portugal? Doutor Lacan? Etc.-etc.?

O gênero nos escapa, os nomes arranhariam a resenha deste livro tão bem pouco arranhado pela autora. Betty Milan escreve com o cuidado de não se deixar levar por nomes, de não submeter o som ao sentido único, redutor, de não deixar o ritmo (poesia?) de sua prosa se submeter às questões. Embora elas, inevitáveis na vida e na prosa, existam. Uma delas é este evento estranho. Chegar mais perto de si é ir mais longe, o depois é o antes, Seriema não pode se encontrar sem encontrar suas origens, não há agora, ou há agora porém fazendo o que o antes decidiu. Isso nos faz pensar nas moiras dos gregos. Faz-nos pensar também no poema de Paulo Leminsky, dizendo que, enquanto pensamos controlar o barro nada mais estamos fazendo do que o barro quer. Ou — e já que estamos com referências psicanalíticas — em conceitos como o “mandato geracional”, tão bem desenvolvido por Serge Lebovici, em que vemos filhos realizando (sem o saber) o que fora decidido há anos na vida emocional de seus pais e seus avós. Ou em Alice Miller, com sua proposta de fazer da psicanálise uma elaboração de um luto da infância em sua direção tão freqüente de tomarmos o sentido de agradar pai e mãe, e não o que de fato queremos ou quereríamos nesta vida. Ou na etnopsiquiatria, com sua abordagem eclética defendida por Marie Rose Moro, onde o cultural ocupa o seu lugar de forma decisiva, sendo psicologicamente fraco o sujeito que ignora suas origens, com as quais é preciso alimentá-lo tanto quanto ajudá-lo a compreender sua vida interior. Parodiando o popular, quanto mais Seriema não reza, mais assombração lhe aparece. Quanto mais mergulha no francês, mais lhe vem o idioma de Açu, esse idiomazão novo como o seu país e também por isso capaz de brincar, jogar, inventar. E quanto mais Seriema parte, mais Seriema volta, e Açu já não é o começo. O começo é de antes, vem de longe, vem do Líbano, de um Líbano muito anterior às guerras que o devastaram e tornaram alguns de seus habitantes parte do grupo dos imigrantes de Açu, assim como os japoneses, os alemães, os poloneses, os italianos, os judeus, entre outros. Um Líbano feliz, culto e cultivado, com seus poetas e artistas fazendo fundos e charmes como se fazia na Paris de Seriema. E fazendo aquela teia de aranha de que fala Lígia Fagundes Telles quanto à composição de seus romances, Seriema volta ao pai, à mãe, aos tios, aos avós, a tudo de volta que conseguem realizar os olhos que desejam ir longe.

Muito sutil, e quando não, a história perde um pouco da sua força. Algumas sessões com o doutor, por exemplo, parecem arranhar por momentos a profusão do ritmo dessa prosa quase sempre tão fiel a uma de suas citações que vem de Verlaine, esse poeta: “Pas la Couleur, rien que la nuance!” Mas a história não se perde, ou se perde consciente de suas cores e em seguida retoma as suas nuanças.

Seriema, alimentada de origens, vai aprendendo e crescendo com a obra. Fica poeta, criativa. A prosa agradece, enorme. Ganha versatilidade. Às vezes vem em verso, às vezes vem enxuta, às vezes vem barroca. E vai agregando dúvidas à sua fé, Deuses à sua religião, nomes ao seu nome, romance franco-brasileiro-libanês-lacaniano-umbandista-universal, até perder seus arranhões, até perder seu nome. Livre, solta, forte e, para ressaltar, universal.

É poesia agora, e dela ninguém sai. Drummond tem aquele poema em si contundente, cantando que de tudo fica um pouco. O Papagaio e o Doutor talvez fique por aí. A mostrar que de uma longa história de imigrantes, de busca, de fuga, de prosas arranhadas de suas ações, o que fica é este pouco valioso e tão bastante: de texto, de vida, de poesia, de boa literatura.

 

 

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* Sem referência.