AS VOZES DE EROS

leitura dramática

AS VOZES DE EROS
(O texto a seguir foi concebido para ser lido por duas vozes,
introduzidas
respectivamente por VOZ 1 e VOZ 2.)

MY MAN

VOZ 1: Quando o esperado, o amante de Lia, o meu? Auréola de cachos negros, tez morena e olhos glaucos será? Um anjo cor de jambo. O sorriso para saudar o encontro e, me vendo, o olhar de quem enxerga um cenário sonhado. Uma mesma voz melíflua para dizer sim ou até não, querendo ser amado sobretudo. O amante, quando?

VOZ 2: Nunca me lembrarei do relógio e não me importará sequer o fato de ser dia ou noite.
O amante para que eu, com ele, possa me transladar de um a outro sítio, ver as cores todas na espuma branca do mar.
Outra que não eu, por me fazer amar, Ali me fará ser. Por amar, outro forçosamente ele será.

VOZ 1: Mesmo nos dias de quarto minguante, com Ali eu verei a lua cheia.

VOZ 2: Champanhe. Verta ele da sua na minha boca o champanhe e a língua abrupta com que me fará fechar os olhos, me deixará sem nenhuma palavra que não seja Ali. Ficar enfim sem palavras e bendizer calada o fato de nada poder dizer. Ouvidos eu então só terei para o silêncio e para My Man na voz mareada de Billie Holiday.
Que Ali me beije os lábios, odor de tabaco me envolva, e escorregue com a língua até a garganta, me satisfaça a primeira gula.

VOZ 1: Me beije, me envolva e se afaste para olhando me apalpar o seio-cabaça da direita, beber depois o mel do bico intumescido no seio esquerdo, o do coração. Me prenda o mamilo entre os dentes, deixando que eu, entreaberta, acaricie com a alamanda o meu botão. Deslembrada do que não seja Billie Holiday, entregue à boca dele e ao meu roçar, desejando que ele adie o gozo e se satisfaça com o adiar.

VOZ 2: Mel de acácia no rego dos seios e nas pétalas da rosa entreaberta. Perfumar assim a língua dele, prometendo ser flor de laranjeira depois. Ser todo dia outra e com isso escapar ao tempo. Lia, Lúcia ou Lia Lúcia para beber na fonte de Juventa. Apegada ao que sou, eu logo morreria.

VOZ 1: Que Ali me deixe estar de borco e se deite sobre o meu corpo. Me alise depois os flancos dizendo Te amo, Lia Lúcia até que eu me erga e me arreganhe e ofereça a segunda porta, ai. Billie Ai para Lover man.
Não haverá porta de entrada que não nos convenha e nenhuma que deva permanecer fechada. De todas nós nos serviremos.
Que ele, adiando o fim, se retire e permaneça silente na cama, comigo ouça o Hare Krishna. Me deixe aspergir os lençóis com essência de jasmim para que o Kamasutra se lembre de nós, possa o nosso rito variar… Manga ou abacaxi? Maracujá, responde Ali.

VOZ 2: Pelo rubro transparente eu tomarei o Campari. Com este, pincelar, sentada na cadeira, a fenda cor-de-rosa. Os joelhos entreabertos, apartar os lábios e me olhar no espelho, deslizar o dedo pelo meio e degustar. O suco é esse, dirá Ali, que quer ser o espelho antes de beber. Que eu me veja no olhar com que ele me fita a fenda.
Só me restará agora fechar os olhos e o receber, acariciar-lhe as nádegas e as pernas, colher lírios em tal alcova.

O BORDEL

VOZ 1: Ao bordel, ao Fugitivo, onde, tomando o desconhecido pelo homem que eu espero, terei a ilusão de ser amada.
Sexo individual ou conjunto. O cenário de uma alcova de paredes nuas ou uma saleta giratória espelhada para você nunca deixar de se enxergar.

VOZ 2: Por que não um de nome Li, um chinês?
O ir e vir do dedo até o arremesso numa praia longínqua, onde o tomo por outro, e, só o que o comparsa quiser, eu quero. Me ensandece, mulher, e depois jura que me ama.
A jura no bordel. Diga que me ama para que eu não seja nemo, ninguém, e você, então, tomando-o por quem você desejaria que ele fosse, diz Eu te amo. O faz-de-conta para velar a realidade, ele esquecer que passa por outro e eu que ele é apenas um simulacro.

VOZ 1: O só fervor do Fugitivo, onde, me beijando a pomba, Li se diz que sou feita para o seu voo, sou perfeita, inteiramente sob medida.
A corte sem palavras, do corpo para o corpo, e é Li que me deita na mesa para, no meu antro, introduzir bagos de uva gelados. O frio? Me tonifica e mais ainda o enrijece quando ele amassa, com o sexo, os bagos roxos, extraindo, ao som de uma valsa conhecida, o vinho das entranhas. A tentação de Strauss, que desejava oferecer num chão de feno à sua Dama, como à singela camponesa, um coquetel de sêmen e morangos por eles colhidos, morangos silvestres.

VOZ 2: Li ou algum outro que possa me iludir. Olhos cor de violeta e mecha branca. De nome Laio, por que não? O modo? De quem está para o que der e vier. Poderá assim me propor o que eu desejo, me servir na realidade a fantasia.
Despida, sem vergonha das vergonhas, me aproximo de Laio com uma outra que comigo se assemelha: Laís. Possa Laio nos olhar, supondo talvez, pela cor morena da pele e pelos cabelos negros escorridos, que somos duas icamiabas.
O meu dedo em volta do bico do seio dela, direito, esquerdo, o bico do céu. O dedo nos meios até que o rosto de Laís se transfigure e eu, na terra, veja um anjo.
Que ela depois me umedeça a corola e a deixe para outro abrir, para Laio, que se adentra dizendo Lia, enquanto secretamente eu me entrego ao que não está.

VOZ 1: Onde mais Laio agora me quer? Na segunda porta? Me viro e me ergo para oferecer a brecha. À maneira de um abano, vou me desancando de um para outro lado. Ora côncavo o flanco de jambo, ora fundo, arqueando-se convexo. Quanto mais ele puder, melhor. Que me tome longa e veementemente, seja lento e sorrateiro.

VOZ 2: O bordel com Li, Laio ou outro que, tomado por um langor oriental, me abra um leito de seda cor de vinho, suntuoso, onde eu entregarei o corpo para mais e ainda imaginar o esperado, assim o encontrar. Que eu possa repetidamente me deitar nesse leito, me cobrir com a folha da vinha e me deixar envolver.

A CORTESÃ

VOZ 1: Não ser mais a que espera, antes ser a esperada ou a que faz com ela sonhar. Deixar de ser quem sou, sendo a que o parceiro desejar que eu seja, ora oferecendo um silêncio omisso, ora dizendo as palavras que ele deseja ouvir, propiciando sempre o engano necessário à ilusão.

VOZ 2: Ser mirra ou benjoim sendo uma cortesã. Ser como a egípcia antiga que se apresentava com uma ânfora de barro numa bandeja de cobre, se ajoelhava sobre as tranças e oferecia o chá murmurando felicidade e dizendo graças a você ao ouvir o obrigado.

Me abaixar e tirar os sapatos do homem, lavar-lhe os pés, enxugá-los e massageá-los delicadamente, fazendo o calcanhar amortecido saber do dedo e o arco saber da sua curvatura. Só então calçar os chinelos de napa. Preparar o banho quente e o outro, tépido, a toalha felpuda com que de cima a baixo o enxugarei, o quimono de seda bordado que ele usará para entrar numa alcova já incensada, onde a sua bebida preferida se encontra e também o fumo, o que se puxa simplesmente e o que se traga.

Só a música de que ele gosta haverá de ser tocada, o instrumento que o transporta para um sítio longínquo, sonhado. O alaúde, a flauta ou o violão. Somente a palavra que ele porventura desejar ouvir se dirá, nesse antro criado para fazê-lo supor que Lia, a cortesã, desde sempre esteve à sua espera.

VOZ 1: Quererá, por ter visto uma lua em forma de adaga, a dança dos sete véus? uma mulher que saiba fazer o ventre ondular?

VOZ 2: Me exibir dançando e o levar do quarto para o cenário que a dança evoca, uma sala de lambris avermelhados e chão de mármore, um antro onde borbulha o narguilé, e a luz, filtrada através de vitrais coloridos, se reflete nos lustres de vidro soprado. O tapete é aí o mobiliário, e eu ora me sento, ora me deito, oferecendo o corpo entre os anjos tecidos, os músicos e os pavões.

O homem já me quer nesse espaço onde a luminosidade é tênue e só o rumor da água é audível quando o alaúde não toca? Quer e, também na entrega, eu serei a outra que ele imagina, verei talvez o azul do Oriente, que ora é turquesa, ora é chumbo e ora é real.

Pede que separe primeiro as pernas para ele no entremeio introduzir o dedo cálido do pé? Separo. Que eu, para aumentar a sua virilidade, lhe sopese o sexo? Isso faço até segurar um cetro na mão.

O mandarim me imagina agora em cima dele? Por que não? Sugere que deite, me abra e deixe que ele, com os braços, me levante as pernas e as segure no ar? Que o cetro chinês de jade faça da cona um vale púrpura.

LESBOS

VOZ 1: Nem ser a que espera e tampouco ser a cortesã, a que só para propiciar a mulher esperada deve existir e assim só esta fantasia deve ter. Nem viver para um homem imaginário e tampouco para ao homem servir a cena imaginada.

Ir a Lesbos, terra das noites quentes cheias de langor. Lia e uma outra igualmente morena cor de jambo e de cabelos negros escorridos, uma que comigo se assemelhe. Nome? Lídia, por que não?

VOZ 2: Lia e Lídia na ilha de Safo, sob a proteção de Afrodite, a Persuasiva, e Mitilene, à beira do mar azul. De mãos dadas pelas ruas estreitas, entre outras mulheres de túnica púrpura ou cor de jacinto oriental, argolas de ouro com pérolas naturais, braceletes de prata maciça e no tornozelo uma serpente.

VOZ 1: Descalças seguirmos pela praia que a lua ilumina, tanto olhar a ninfa que se consola preparando coroas quanto a outra, que cola os lábios aos da amada, alisa a sua coxa, introduz entre as suas pernas o joelho, dizendo que só foram feitas para rolar na areia e se banhar no mar anil.

VOZ 2: Tudo me dizer prometerá Lídia, exaltando Mitilene e o templo onde as mulheres cultuam Afrodite. Tudo me dar e como brinquedo se oferecer para que eu com ela me divirta, desfaça o seu penteado e o refaça como bem entender, pinte os seus lábios de rosa ou carmesim, vista-a com uma túnica ou a cubra somente com bagos de uva. O que eu, Lia, dela quiser, e Lídia promete ainda me cuidar o corpo, perfumando-o com água de rosa. Promete velar o meu sono e assistir o acordar, me acolher com os olhos pesados de tanto dormir, me pôr o chinelo, desembaraçar o meu cabelo e trazer o primeiro leite. Jura, por fim, que só há de me trocar por outra no dia em que a água dos rios subir até o cimo das montanhas, o trigo nascer do mar, os pinheiros, dos lagos e as vitórias-régias, dos rochedos.

VOZ 1: Deixar que a volúpia nos tinja de vermelho as bochechas e lance para o alto os olhos, com o céu nos faça ver o arco-íris. Deitar o corpo sobre o de Lídia e beijar a sua boca, conforme ela deseja. Já com isso levá-la para um antro subterrâneo, onde nos amaremos sem memória alguma do dia.

Acariciar o flanco da amada com os dedos mais sutis, contornar de leve o seio até ver o mamilo despontar, ela insensivelmente afastar as pernas e não haver mais risco de comigo não seguir viagem, eu me dizer que já estamos num sítio que é só nosso e ao qual nem nós mesmas poderíamos retornar.

O que mais, depois, Lídia quiser, porém nunca de imediato, para que ela possa mais e ainda imaginar.

VOZ 2: Fotografar o rosto de Lídia que, deitada na cama, levita. Gravar o ai, o aaaaaai, com o qual ela quer morrer de não morrer. Lídia como Santa Teresa. Místicas as mulheres todas acaso serão, menos nascidas para a terra do que para o céu? Lídia de Ávila. Fotografar de novo o rosto, quando ela segura os seios como pomos e rola os mamilos entre o indicador e o polegar. Beijá-la na boca, nas pálpebras e dizer de mil e uma maneiras o arrepio que o seu corpo oferecido me causa.

VOZ 1: Me estender de borco, como Lídia então me quer, para que ela veja os meus cabelos negros luzidios, e eu, não a vendo, ouça melhor a sua inconfundível voz. De borco, para que ela, com a mão, me ofereça as costas e a curva das nádegas, eu também saiba das coxas e das pernas e dos tornozelos, antes de ela se introduzir nos meus meios.

VOZ 2: Pudesse eu te emoldurar de costas, assim te eternizar, me diz Lídia, me tirando da cama e me cobrindo com uma capa de veludo roxo que só no pescoço se fecha. Que eu ponha os sapatos de salto alto e, segurando na mão uma glicínia, do quarto faça uma passarela, desfile deixando a capa se abrir do rego dos seios aos pés para exibir o umbigo e o púbis que Lídia apenas perfumará. Que eu desapareça atrás do biombo e aí escolha a roupa que me aprouver.

VOZ 1: Me dispo e me visto com um sutiã de seda preta que se fecha atrás, e é só feito das alças e do contorno dos seios. O sutiã, a meia e a jarreteira sem calcinha, a fim de que Lídia possa logo me abrir as pétalas, bendizer os tantos anos loucos por vir.
Serei glicínia e serei jasmim. Na passarela, capa ou body para Lídia, que tão bem poderá se apresentar de boa fé quanto de smoking preto e flor vermelha na lapela.
Imprevisível, como feita para me surpreender.

VOZ 2: A tudo me disporia para escutar a voz que me transporta para longe na terra ou me faz singrar numa catedral de vidro em alto mar, atravessar as águas ora olhando o cardume pintalgado dos cavalos-marinhos, ora a constelação efêmera das estrelas-do-mar, esquecida de ser quem sou e de que eu e ela também somos duas mortais.