As imagens do “eu” e do “outro” em O papagaio e o doutor

As imagens do “eu” e do “outro” em O papagaio e o doutor, de Betty Milan

 

Marcon, Adriana (UNESP – Universidade Estadual Paulista).

 

 

RESUMO: Este artigo traz uma leitura analítica da obra O papagaio e o doutor (1991) de Betty Milan, escritora e psicanalista brasileira, pela perspectiva da imagologia literária. O objeto deste estudo são as imagens de países criadas e veiculadas pela literatura. Antes de tornar-se escritora, Milan especializou-se em psicanálise na França com o renomado psicanalista Jacques Lacan. Tal vivência inspirou à escrita da obra mencionada que narra a saga da imigração libanesa no Brasil e o encontro da protagonista com um doutor, provavelmente, inspirado em Lacan. O papagaio e o doutor possui aspectos que dão suporte à análise imagológica, pois a matéria narrada propaga representações de culturas distintas: francesa, açuana e muçulmana. Apesar da variedade temática e da sua complexidade, o foco narrativo esta na busca da identidade de Seriema, personagem principal. Ela começa a sua busca pelo outro lado do mundo (França), pelo mundo do outro que para uma originária de Açu (país imaginário da América) significa a Paris intelectual e dominadora. Em meio a uma França mítica e majestosa, aos doutores da Sorbonne, ao ilustre analista e ao reencontro com seus antepassados, Seriema irá se perder para se encontrar, a si e aos seus. A partir deste contexto constroem-se os inúmeros imagotipos da obra, os quais objetivam levar o leitor a refletir, dentre outras nuances, sobre o drama da imigração, aculturação, perda de identidade que implica cada partida, como também a riqueza da nova mestiçagem.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada; Imagologia; Betty Milan; O papagaio e o doutor.

 

ABSTRACT: This paper analyzes the work O papagaio e o doutor (1991) written by Betty Milan, a Brazilian writer and psychoanalyst, through the perspective of the literary imagology. It aims to show the images of countries created and disseminated by literature. Before becoming a writer, Milan specialized in psychoanalysis with the renowned psychoanalyst Jacques Lacan. Maybe, this fact had inspired the writing of the work mentioned. The narrative shows the saga of the lebanese immigration in Brazil and the meeting of the main character, Seriema, with a Doctor, probably inspired by Lacan. O papagaio e o doutor has aspects that supports the imagological analysis, since it propagates representations of diferent cultures: French, “Açuana” and Muslim. Despite of the variety of themes, the focus is on the Seriema’s identity search. She’s from “Açu” (imaginary country of America) and begins her quest on the other side of the world (France), in the intellectual and dominating Paris. In a mythical and majestic place, among the doctors of Sorbonne, the distinguished analyst and the “meeting” with her ancestors, Seriema will lose herself to find herself. From this context, several images will be built during the narrative to make the readers reflect about the immigration, acculturation, loss of identity and the wealth of the new miscegenation.

KEY-WORDS: Comparative literature; Imagology; Betty Milan; O papagaio e o doutor.

 

INTRODUÇÃO

O termo literatura comparada, costumeiramente empregado no singular, é compreendido em sua multiplicidade, uma vez que designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas. Devido à ação múltipla que a expressão engloba, pode-se dizer que tal área pertence a um vasto campo de atuação. Segundo Celeste H. M. Ribeiro de Sousa (2004, p.33-75), foi no final do século XVIII e começo do XIX que se torna maior o interesse por outros povos e é nessa época que surge o termo literatura comparada. Tania Franco Carvalhal (2010, p.8) acrescenta ainda que seu surgimento está vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante nas ciências naturais.

Embora empregada em toda Europa, é na França que a literatura comparada irá se firmar. O rápido desenvolvimento do comparativismo literário no território francês foi favorecido pela ruptura com as concepções estáticas e com os juízos de valores reputados intemporais e intocáveis, preconizados pelo historicismo dominante. Assim, tal difusão coincide com o abandono do predomínio do chamado “gosto clássico” e a integração dos ideais cosmopolitas vigentes. Após mais de dois séculos de estudos sobre o tema, a literatura comparada volta-se, atualmente, para os estudos de imagologia, de casos fronteiriços e de relações literárias.

A imagologia é uma área de pesquisa que estuda as imagens veiculadas por países distintos, além de apresentar um verdadeiro entrecruzamento de vários campos do saber, sobretudo o da literatura. Um de seus intuitos é promover o aumento da tolerância entre os povos, pois o que antigamente era considerado agressivo e inviável, hoje pode passar a ser visto como diferença cultural. Em meio a isso, mas agora partindo para um enfoque específico, a imagologia literária investiga, dentro da literatura, o conhecimento das imagens, isto é, das projeções que um país possui de outro país. Ainda hoje, tal área está situada dentro do campo ocupado pela literatura comparada, embora Hugo Dyserinck defenda que a imagologia dispõe de todos os pré-requisitos para ser considerada uma ciência autônoma, uma vez que possui um objeto de estudo próprio e preciso (imagens de países criadas e difundidas pela literatura) e campo de trabalho bem definido. (cf. SOUSA, 2004, p.22-23).

Atualmente, a teoria de Dyserinck é considerada um divisor de águas nesta área, pois para ele a imagologia não tem como papel descobrir novos perfis de uma identidade nacional, como havia sido preconizado anteriormente, nem perguntar pelos caracteres nacionais. O objetivo fundamental é alcançar e analisar as configurações das imagens de países presentes na literatura, o modo como elas se estruturam, assim como estudar o seu desenvolvimento e sua repercussão. Ademais, tem por finalidade contribuir para o esclarecimento do papel que tais imagens literárias desempenham no encontro de culturas (ib, p.65-75).

 

BUSCA DA IDENTIDADE A PARTIR DA ALTERIDADE

Em O papagaio e o doutor, romance escrito por Betty Milan, autora e psicanalista brasileira, podem ser encontrados vários aspectos que dão suporte a análise imagológica, uma vez que a matéria narrada propaga imagens de países e culturas distintas. A estadia da autora na França e a especialização em psicanálise com Jacques Lacan, provavelmente, inspiraram a produção da referida obra, pois, Paris torna-se não somente a cidade da formação em psicanálise, como também o exílio voluntário da escritora. O aprendizado da cultura francesa desperta um interesse novo pela sua própria cultura e o contato com o mestre do divã a ensina a não imitar o mesmo e a valorizar a sua própria singularidade.

Mesmo com a presença de matizes autobiográficos, não se pode classificar O papagaio e o doutor como uma autobiografia propriamente dita, pois não há relação de identidade entre autor/narrador/personagem. Já o romance, contrariamente à autobiografia, é um espaço imaginário em que estes últimos só coincidem pela vontade do autor. Dessa forma, observa-se na narrativa dados que indiciam uma possível relação entre a autora e a personagem principal (Seriema). Além do mais, não faz sentido hoje querer saber se esta narrativa pertence a outro gênero literário – romance ou autobiografia. Segundo Michèle Sarde no posfácio da segunda edição de O papagaio e o doutor, basta que se classifique o livro de Betty Milan no gênero pós-moderno.

 

Ora, o livro de Betty Milan trata justamente de América e de doutores sobornícolas, como de muitos outros assuntos, pessoais e coletivos, locais e universais. Trata também de personagens, no sentido mais tradicional do termo, desde os protagonistas, que são Seriema e o Doutor, até a assembléia de ancestrais libaneses, “turcos” de Açu, que invadem progressivamente o divã do Doutor para transformá-lo em tapete voador, conforme a tradição tão conhecida do realismo mágico latino-americano. Trata-se, em suma, de uma história no sentido amplo de fábula, mito, conto, saga e aventura intimista. Ou seja, de ficção na sua forma mais moderna desde o século XIX: romance. (SARDE apud MILAN, 1998, p.194).

 

Apesar da abundância de temas e de sua complexidade, a narrativa de O papagaio e o doutor está centrada numa única proposição: a busca da identidade de Seriema. As sessões de análise com Dr. Xan, um brilhante psicanalista francês, é o meio escolhido pela protagonista para solucionar esse enigma, além de ser a via principal que permitirá com que a mesma busque nas raízes de seus antepassados, os imigrantes libaneses, o suporte para decodificar este questionamento de cunho existencialista. Assim, Seriema começa a sua busca pelo outro lado do mundo, pelo mundo do outro que para uma originária de Açu, país imaginário da América, significa a Paris intelectual e dominadora.

O reencontro com os ancestrais e as viagens entre Europa e América fará com que Seriema sonhe com seu país natal, despertando um interesse novo pela sua própria cultura, pela sua origem. A cura analítica constitui a alavanca narrativa do relato, pois o fato da autora ser analista contribui para a evolução precisa da análise no romance e também é um recurso narrativo que permite dar a informação necessária à inteligibilidade da cadeia de acontecimentos e das etapas da busca de identidade.

 

Hora e vez de dizer quem era. Possível? Uma história americana da imigração Senhor Doutor, uma açuana que não o é para os do Cedro e tampouco para os de Açu, entre estes aliás é uma “turca”, um ser inviável, senhor Doutor, no próprio país, à procura de outro onde seja reconhecida. (MILAN, 1991, p.48).

 

O fragmento acima ilustra o conflito interior da personagem em relação à sua origem, bem como mostra uma visão “negativa” que os açuanos têm dos libaneses, o que remete ao estranhamento em relação a uma cultura diferenciada. Em meio a oposições de ordem social, moral e espiritual, Seriema tenta a partir do espelhamento no outro, desconstruir heteroimagens para encontrar a si mesma.

 

– O que mais? Pergunta o Doutor.

– Minha irmã sou eu mesma. Milena… eu nela vivi me olhando, como   Narciso no espelho d’aguá. Morta… Por quê? […]

Sonhando com Milena morta eu havia obedecido, perdendo a outra em que narcisicamente me espelhava e não me via. Sem o mesmo rosto eu não era eu, sem a crença no espelhamento. O espelho nas mãos partido como nas da tia. (ib, p.114).

 

Essa passagem, na qual Seriema relata ao Doutor um sonho que teve com sua irmã, é apenas uma dentre inúmeras outras em que se observa a metáfora do espelho; a recorrência de um campo lexical que remete para ações relacionadas ao “olhar”; além de apontar para a lenda de Narciso, registrada nas Metamorfoses de Ovídio e que representaria, segundo os filósofos neoplatônicos, a situação do homem que, desconhecendo o fato de que a beleza existe dentro de si, a procura fora, nas coisas externas, em vão. (cf. SOUSA, 2004, p.105-146)

O discurso do espelho na obra entende-se como uma tentativa de pensar a simultaneidade, de relativa autonomia, e a dependência, em relação à origem, ilustrando a inutilidade de buscar no exterior algo que está intrinsecamente ligado ao interior, como também o destino do homem de projetar o que está dentro de si para fora, sem se encontrar nunca.

Aliás, o que se pode notar, como já apontou Sousa (2004, p.21-32) em O que é imagologia? é que a desconstrução feita pela narradora-personagem conduz não só a uma maior compreensão da cultura da autora criadora e emissora das imagens relatadas, como também a uma reflexão mais profunda sobre a identidade cultural do país, cuja imagem e ou imagens se estuda, já que a formação de heteroimagens está ligada à projeção de autoimagens.

A partir deste contexto, o próximo tópico irá tratar do encontro de culturas distintas na obra de Milan (árabe, açuana, que como se verificará mais adiante pode ser entendido como a cultura brasileira e a francesa), além de mostrar alguns dos imagotipos verificados na narrativa com o intuito de mostrar a desconstrução que Seriema faz dessas representações para encontrar a ideologia latente na imagem que ela constrói de si.

 

 

IMAGENS EM MOVIMENTO: AMÉRICA, EUROPA, ÁSIA E OUTRAS REPRESENTAÇÕES

A imagologia literária, como já mencionado, corresponde ao estudo das imagens que uma determinada nação faz de outra e de como isso se inscreve na literatura. É, possivelmente, uma das práticas comparatistas mais antigas e ainda hoje frequentes e que incorpora recursos teórico-críticos atuais, como noções de recepção literária e da teoria da tradução, reencontrando sua identidade transdisciplinar. (CARVALHAL apud SOUSA, 2004, p.09). O papel da estética da recepção no processo da pesquisa imagológica é de suma importância, pois para a realização deste tipo de análise é necessário o conhecimento de outros saberes, que podem auxiliar na localização de fatores culturais relevantes.

Valendo-se de tais aspectos, a presente leitura levará em consideração algumas sugestões do método de investigação dos estudos imagológicos proposto por Sousa (2004, p.22-23): primeiramente será feito o recorte, seguido da análise de trechos que veiculam imagens de um país; após esta etapa, será feita a interpretação das relações dessas imagens com outras dentro da obra.

A narrativa de O papagaio e o doutor encontra-se formalmente dividida em três partes: parte I (MILAN, 1991, p.09-35), parte II (ib, p.39-74) e parte III “Périplo” (ib.id, p.77-193). Na primeira delas, destacam-se dados que estão relacionadas com a “viagem física” da personagem, ou seja, o deslocamento de Seriema até a Europa. Já as outras duas partes estão voltadas para a sua “viagem psicológica”, que implica as sessões de análise da personagem, permeadas de sonhos e devaneios e que de uma forma ou de outra, sempre retornam ao passado, à sua origem.

Além disso, o conteúdo narrativo possui fragmentações, sugerindo três possíveis planos que se interrelacionam durante a tessitura do romance. A narrativa primeira está centrada na narração dos episódios da vida da personagem e nos poucos diálogos estabelecidos com o Doutor Xan. No segundo deles, enquadram-se os devaneios de Seriema durante as sessões de análise. Este processo de associação livre da protagonista pode ser observado na fragmentariedade e na imprecisão do seu discurso, que irá refletir também na composição formal da obra, mais precisamente na pontuação incerta e não convencional e no entrecruzar genológico entre prosa e o que parece ser poesia. Por último, há várias interrogações “soltas” e sem respostas durante a narrativa, questões estas que parecem estar arraigadas no inconsciente da “analisanda” (ib.id, p.22) e que têm o intuito de inserir o leitor neste processo, aproximando-o da história, dos conflitos e da busca de identidade da mesma.

Partindo para o levantamento das imagens, a respectiva análise começara com a seleção de um trecho que registra o imagotipo francês, uma vez que a cidade de Paris fará com que Seriema sonhe com seu país natal, despertando na mesma um olhar novo sobre sua cultura, sobre suas origens e o mais importante, sobre si mesma.

 

No centro do centro de França o restaurante. Só de espelhos era o do meu sonho e Étoile ele se chamava. Maître de smoking e cardápio cor-de-rosa. Mas tal peixe assoprado como seria? Um sopro divino? A carpa semiluto estaria semiviva? Diferença entre batatas marquesa e duquesa? Tartaruga assada e até mesmo crista de galo… Isso sem contar a quantidade de vísceras propostas.

– A senhorita deseja?

A senhorita ali estava muda, impedida pela ignorância de desejar o que quer que fosse.

– Acaso quereria…

– Queijo, respondi de sopetão para me livrar, antes me ver às voltas com duas enormes bandejas, a variedade toda de queijos para que eu, desconhecendo o nome e o gosto de cada espécie, escolhesse!

– Quais? Insistia agora o garçom, sem perceber o incômodo, e foi então sua voz ressoando e a clientela se voltando para olhar, eu que subitamente despertei assustada.

O bom queijo lá de casa… parceiro fiel da goiabada…Romeu e Julieta para segurar na mão e abocanhar sem medo. (ib.id, p.101).

O excerto acima mostra a imagem de uma França mítica, dos duques e duquesas, de uma França luxuosa. Imagotipos desse tipo são recorrentes na visão que os americanos têm da Europa, pois muitos consideram certos países europeus como o padrão de elegância e desenvolvimento. Tal superioridade é verificada na escolha do campo lexical que está sempre voltado para o requinte, como se nota nos vocábulos: étoile, que significa estrela, astro, como também se refere a uma ostentosa linha de restaurantes na França; na figura do maître (mestre, chefe, dono) de smoking; no emprego dos qualificadores “divino” para designar o tipo de peixe e “marquesa” e “duquesa” para designar as batatas; na enorme variedade de queijos e finalmente, na comida exótica, “tartaruga assada” e “crista de galo”, que exatamente por serem pratos distintos e difíceis de encontrar, se pressupõe que sejam caros. Em contrapartida fica implícito a inferioridade e a “ignorância” dos americanos, que pertencem ao mundo subdesenvolvido, a uma realidade não luxuriante. Tal fato é observado no impedimento de Seriema desejar o que gostaria, pois a rica gama de queijos franceses é um terreno desconhecido. A saída encontrada pela personagem é recorrer àquele que lhe é familiar, que é típico do seu país, o Romeu e Julieta, o bom e conhecido queijo com goiabada.

Outra imagem tecida durante a narrativa é a de Açu, país imaginário da América e freguesia natal da protagonista. As passagens que descrevem os costumes, a cultura e o clima deste local fictício, nos leva a pensar que o mesmo seria uma metáfora do Brasil, ainda mais pelo fato de que Betty Milan é brasileira e de que Açu ou Assu é um município brasileiro localizado no Rio Grande do Norte.

Dentre as inúmeras imagens veiculadas é marcante a presença de representações que condizem com o estereótipo que muitos, em especial os europeus, criaram da mulher brasileira e do país em si.

O imagotipo do Brasil como uma região colonial é recorrente na literatura até os dias de hoje, uma vez que os primórdios da existência brasileira se confundem com a imagem que os portugueses construíram do Brasil naquela época. O que se falava tinha pouco a ver com a realidade e muito a ver com a fantasia do europeu, ainda profundamente arraigada na Idade Média.

 

Bastava agora estar ali, sonhar acordada comigo mesma, olhar-me no espelho imaginando o chapéu – flores ou voilette – considerando o rosto, ou da cintura para cima, o corpo. Sim, pois que para baixo ele só me desservia, tais ancas e um traseiro tamanho que precisaria a cadeira de um recuo especial. A moda não concebia as minhas curvas… e eu, fora dela, não me concebia.

Operar-me. Dior eu então vestiria, Nina Ricci, Saint-Laurent […] Seriema podendo se olhar de alto a baixo, ser inteiramente olhada, amar-se vendo-se e pelos outros sendo vista. Dior ou Saint-Laurent […] o corpo cabide para eles, não mais para exibir de tanga e cocar… (ib.id, p.93).

Isso lá me importava? De somenos, e eu jamais teria dado a devida importância ao fato não fosse o Doutor, que sub-repticiamente datava as minhas origens do Carnaval, dançava a valsa vienense mas também apreciava o rebolado, insistia que Açu é um sonho de França e esta deveria se tornar mais açuana. (ib.id, p.26).

 

A primeira passagem constata os dois pontos acima tratados, de modo que a identidade cultural da personagem é marcada pelo seu físico, pelas suas “ancas e um traseiro tamanho”, em que a moda não concebia suas curvas. Assim, o que é europeu não se encaixa no americano, impedindo a personagem de se inserir e de se encontrar na cultura do outro, além de acentuar as diferenças entre essas duas nações. A presença do vocábulo “espelho” e de outros que se referem ao “olhar” evidencia o mecanismo principal que a personagem faz uso para encontrar-se, o de olhar para si através do outro. As roupas de marca famosas (Dior, Nina Ricci, Saint-Laurent) representam o meio para ela atingir o reconhecimento da sociedade na qual está incluída, bem como a saída para desvincular a imagem que os europeus possuem sobre os habitantes de sua terra natal que usam “tanga e cocar”. Já o segundo fragmento retoma a ideia do Brasil como paraíso tropical, o país do carnaval, do samba e das belas mulheres, um país em que tudo é perfeito e exuberante.

Devido à descendência libanesa, no decorrer da narrativa Seriema rememora a história dos seus ancestrais, a saga dos “turcos” de Açu, trazendo junto com eles imagens de um país que mesmo em tempos modernos mantêm costumes pautados em tradições antigas, normalmente relacionadas ao islamismo e possui uma cultura opressora.

 

Sim, já ninguém usava véu como no Oriente mas ali viviam elas veladas pelos muros e paredes, pelo silêncio imposto à fala, que não as devia descortinar. Censura-te Flora ou Dora. Todas mulheres já nascidas para não vingar, rebentos do Oriente em Açu que nunca lhes foi autorizado, foi visto em torre e das janelas, um país apenas entrevisto. O palacete de mármore e cristais bisotados negava-lhes a rua, era um navio atracado no porto e sem ordem de desembarque. (ib.id, p.171).

Sim, lembrar da história do ouro, do descaso e do extremo caso que do comércio entre nós se fazia. Faia… Dinheiro ou Morte! Jarja… o ensinamento de que sem a compra e a venda não teria o alfabeto sido inventado, sem o comércio que levou os fenícios de Tiro a Gilbraltar. Faia, Jarja, Labi, Inhô, Amiel, Raji, todos artistas da compra e da venda, capazes de leiloar até o lixo, com o verbo dignificar a escória, tirar ouro da sucata… (ib.id, p.162).

 

No primeiro trecho nota-se a presença do estereótipo marcante das mulheres árabes, o da esposa dócil e subjugada. Para escapar desse destino quase irrevogável, Seriema procura no meio intelectual um suporte para escapar à regra: “doutora e não ‘dona’, o diploma para me travestir!” (ib.id, p.156). O véu aparece como símbolo de repressão e apesar de seu uso ir se perdendo na América, as mulheres continuam assim como no Oriente, sem o direito de se expressar, totalmente reprimidas devido a uma imensa gama de costumes. Além disso, a outra imagem que aparece, a do “palacete de mármore e cristais bisotados” onde as mulheres ficam enclausuradas, nos faz pensar nos grandiosos palácios do Oriente rico, trazendo à tona um país mítico e majestoso, que ofusca toda uma cultura opressora. Esta caracterização do Oriente do ouro é verificada no último excerto que também faz referência à importância do comércio para os árabes, bem como ao imagotipo destes como bons negociadores.

Para finalizar, não poderia deixar de lado a figura do “papagaio” que está presente no título da obra e que aparece várias vezes durante a narrativa. Apesar de fugir um pouco do que tem sido discutido até o momento, a simbologia desta imagem é relevante para a compreensão de muitos dos questionamentos que circundam o imaginário da personagem, além de ser um mecanismo chave para a análise imagológica.

 

Voava nas malhas da mãe, e eu que imaginava inaugurar o caminho, trilhava o dos outros, da avó materna, do doutor meu pai e dos papagaios loiros todos especializados fora do país – seres que, empunhando numa pata a foice e na outra o martelo, moravam em palacetes e comiam servidos à francesa, nunca, mesmo adultos, prescindiam de babá. (ib.id, p.41).

Ser forasteira em Açu, mas querer com o país me fazer, contrariar assim o papagaio loiro que podendo sequer se exprimiria no nosso idioma e dele só se valia para suscitar o interesse pelos outros, ensinava a dizer decorado ou calar. (ib.id, p.187).

 

O papagaio loiro, ave nativa da América do Sul, representa de forma simbólica o homem latino-americano que possivelmente possui descendentes da Europa e que vive para imitar o europeu (padrão de civilização), só suportando viver no trópico na companhia de outras pessoas que agem igual a ele, os outros “papagaios treinados” que repetem palavras estrangeiras e que negam o próprio país. A dicotomia “papagaio loiro” é muito significativa, pois o “papagaio” representaria o “eu”, o homem americano, ao passo que “loiro” é uma característica marcante do “outro”, o europeu. Esse jogo de palavras resultaria na mestiçagem, real identidade dos americanos, em especial dos açuanos (brasileiros).

Outro dado interessante e que certamente não é por acaso, é a alusão a uma marchinha cantada por Carmem Miranda (ib.id, p.26) em que há a presença da banana como símbolo do nacional, uma vez que esta é um alimento de regiões tropicais e que se tornou símbolo do Brasil através da música, das performances e da vestimenta de Carmem Miranda (“ oh Yes nós temos banana!/ bananas ai para vos dar e/ vender”); em contrapartida, têm-se oui, vocábulo da língua francesa e yes, palavra de origem inglesa para simbolizar o que é estrangeiro (“oui papagaio nosso do bico dourado”), acentuando mais uma vez a multiplicidade cultural do país de Seriema.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por último, gostaria de salientar que os imagotipos analisados são apenas alguns exemplos, dentre tantos outros que permeiam a narrativa e que são os responsáveis por imprimir à obra a aparência de uma ampla e múltipla imagem. Também, é importante lembrar que as representações de países e de povos veiculadas pela literatura, apesar de artísticas e de serem recebidas pelo leitor no plano do imaginário, acabam, com o tempo, ficando registradas como verdades, ou como diz Antonio Candido, que “[…] as criações ficcionais e poéticas podem atuar de modo subconsciente e inconsciente, operando uma espécie de inculcamento que não percebemos […] e que atuam de maneira que não podemos avaliar”. (CANDIDO apud SOUSA, 2004, p.32).

Em meio a uma França mítica das duquesas, dos doutores da Sorbonne, do ilustre analista que por sua soberba e ignorância do mundo do outro, pode ser considerado uma metáfora do parasianismo emplumado e sedutor e dos “devaneios” que recuperam a sua origem libanesa é que Seriema irá se perder para se encontrar, a si e aos seus.

Portanto, a imagem de Seriema no país dos tupis representa a perda de civilização que implica cada nova partida, como também o ganho da imigração e a riqueza da nova mestiçagem. O drama da imigração, a aculturação e a perda de identidade, levam Seriema a encontrar a resposta para a pergunta que inicia o seu relato: Por onde no entanto começar?

O ponto de partida da sua busca é o mundo do outro, Paris, e termina a história em Açu, lugar em que esta começa na realidade. Assim, é passando pela etapa da desconstrução de uma falsa identidade transmitida por uma tribo que ela consegue se reconciliar consigo mesma e assumir a sua mestiçagem.

 

 

REFERÊNCIAS:

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. 5ªed. São Paulo: Ática, 2010.

MILAN, Betty. O papagaio e o doutor. São Paulo: Siciliano, 1991.

____________. O papagaio e o doutor. 2ª ed. São Paulo: Record,1998.

SOUSA, Celeste H. M. Ribeiro de. Do cá e do lá: introdução à imagologia. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.