As artimanhas e ilusões do amor nos corações das multidões: o culto do impossível

As artimanhas e ilusões do amor nos corações das multidões: o culto do impossível

 

Nelson Motta (1)

Todos tentam explicar de alguma forma a sempre crescente espantosa identidade entre os sentimentos afetivos dos brasileiros e o que canta Roberto Carlos. De nada adianta tentar avaliar – qualitativamente – a forma pela qual Roberto canta – em nome de e para todos os brasileiros – essas “vontades encobertas”, fantasias de amor pleno, pesadelos de ausências doloridas. Melhor recorrer ao que ensina Betty Milan em seu livro Manhas do poder, onde reflete com generosa objetividade sobre o amor e o poder enredados em uma mesma trama.

Diz ela que o amor – tal qual é concebido e idealizado em nosso tempo – é na verdade o “culto do impossível”, que se diz através de juras, que se quer perene, exclusivo e sem falhas. Ser UM, desejo do amor, instituir o UM, suprimindo todas as diferenças, meta do poder. O amor como vontade de poder – experiência de sujeição e desejo de sujeitar.

Roberto canta o apaixonado, o que sofre as sangrias e frui as delícias e ilusões desse culto do impossível, cujo objetivo fundamental, expresso de todas as formas, é fazer de duas individualidades uma só – naturalmente, à imagem e semelhança do mais forte na relação amorosa. E aí Roberto canta o impossível – que por isso mesmo é tão dolorosa e desesperadamente perseguido por todos os que o ouvem e certamente por ele mesmo – como porta-voz das multidões famintas de sonhos e de amor.

Roberto canta as (des)venturas do amor sempre do ponto de vista masculino – o que, paradoxalmente, toca de forma profunda as mulheres, supostamente objeto dessas paixões, devoções e tormentos. Mas na profundidade e origem desse paradoxo está outro, mais antigo, muito mais antigo e ancestral mito da humanidade: o do apaixonado que, no mito antigo, é ativo e quer tomar a presa (a Mulher), sendo assim o sujeito e comandante da ação. Porém, no mito moderno – do amor-paixão –, nas palavras escritas de Betty Milan, a situação se inverte, embora culturalmente a mulher ainda sofra os estigmas da passividade:

“(…) o arrebatador, o conquistador, não quer nada, não faz nada; está imóvel e é o objeto conquistado que é o verdadeiro sujeito da conquista, o objeto da conquista é que se torna o sujeito do amor (…)”.

Os homens querem conquistar apenas para receber o amor das conquistadas, que assim passam à categoria de dominadoras na relação que se forma. E elas exercem esse papel com a eficiência e as vantagens que lhes dão a situação de serem apenas formalmente conquistadas; mas, na verdade, elas exercem domínio sobre os conquistadores, porque cabe a elas dar tudo o que eles querem e que os move em direção à conquista – o amor que se diz através de juras, se quer perene, exclusivo e sem falhas. E isso cabe às soberanas decidir e exercer; não há força física ou dominação econômica e social que possa obrigar uma mulher a dar seu amor – que é tudo o que eles querem. Podem dar seu corpo, fingir emoções, alimentar ilusões, instigar desesperos, mas só em parcas e eventuais ocasiões estão dispostas a dar esse amor, que é em profundidade o objetivo das conquistas masculinas. Na ilusão de poder masculino está a chave “quero escolher aquela que vai me escolher”, ou, de outra forma, “quero conquistar aquela por quem quero, preciso, anseio, ser conquistado”.

Na verdade, tudo mostra a infelicidade das táticas masculinas de conquista dentro desse quadro do moderno mito do amor-paixão. O amor brota ou não, contrariando assim essa suposta condição ativa masculina, quando à luz (ou sombra) dos fatos é o homem que anseia por um amor sobre o qual não tem qualquer poder, embora possa manter em situação de sujeição aquela de quem espera o amor.

Muito mais, e cada vez mais, acredito que o único objetivo do amor é a doação, a contribuição e a consequente satisfação – para o que é capaz de dar –, única forma eficaz de enriquecimento pessoal, porque o amor se alimenta da alegria do outro. Muito mais que a perseguição do objetivo de “ser amado” a qualquer preço – quando ilusão é quase sempre o que é vivido como real nessa busca desesperada de aceitação incondicional do corpo, da individualidade, dos sonhos.

As paixões – como as que canta Roberto – são fugazes e ilusórias como a (in)felicidade das drogas, com que as pessoas procuram modificar um estado de espírito que lhes é sofrido e – acreditam – insuportável. A mesma sensação de engodo, de ressaca moral, de atentado contra a própria vida, de pecado contra a sua própria natureza se encontra nas paixões – ilusórias ou não – quando elas cessam seus efeitos mágicos de promessa da felicidade eterna para dar lugar a um vazio ainda maior do que antes da “viagem afetiva”.

É essa ilusão e esse desencanto que canta Roberto. E o Brasil inteiro sonha, inveja, busca oportunidade ou coragem para exercê-los em um mundo onde há cada vez menos espaço para uma reflexão sobre os sentidos mais profundos do amor – aqueles que são capazes de dar não uma noite de delírio ou uma sensação de aceitação, mas um reencontro consigo mesmo através da doação de seu melhor ao outro, mesmo quando no seu mais íntimo se sabe que esse melhor é pouco, mas é o que há para dar. E mais difícil ainda é encontrar quem se disponha a receber, sem que veja nisso uma falsa ilusão de poder ao sentir que alguém precisa dele e assim pode exercer uma dominação que, antes de ser uma afirmação pessoal, é a morte do amor, mais uma derrota a sangrar os corações de todos.

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1. Nelson Motta é jornalista especializado na área musical, além de letrista e compositor. É autor dos livros Noites tropicais e Vale tudo: O som e a fúria de Tim Maia, entre outros.