As artimanhas do poder, nesta leitura engenhosa e reveladora

As artimanhas do poder, nesta leitura engenhosa e reveladora

 

Haquira Osakabe (1)

O que o poder pode e o que faz para sê-lo. Este é o núcleo da reflexão de Manhas do poder, de Betty Milan. Aliás, parecia ser essa a orientação quase inevitável de seu primeiro livro, O jogo do esconderijo – Terapia em questão, onde a autora desvenda no interior do jogo psicodramático a presença incômoda das relações de poder que, de alguma forma, implodem a própria tarefa terapêutica. Em Manhas do poder, a autora levanta essa mesma questão, agora tematizada. Assim, mesmo sendo clara a ligação deste livro com outros tantos que se vêm ocupando dessa temática, convém, a bem da justiça, situá-lo no interior de uma linha de pensamento pessoal, isto é, no desenvolvimento de uma preocupação e posicionamento próprios, que é o que justifica sua originalidade e sua força.

A preocupação básica do livro (“tentativa de isolar as máscaras e particularizar as artimanhas do poder”) implica uma renúncia explícita: a de atender às exigências de uma análise eidética. Deste modo, cada ensaio que o compõe é sobretudo um exercício de atenção, tentando flagrar o modo de vigência do poder através de desnudamentos sucessivos e, por vezes, implacáveis. Algo como uma batalha em que qualquer descuido é fatal, representando-se por um discurso tenso enredado na experiência. Essa atitude converte-se numa forma de perseguição, como se a autora tentasse devolver o poder ao círculo que o determina. Portanto, a ele mesmo.

O primeiro ensaio, “Diabolavida”, inserido no domínio intitulado Umbanda, narra a experiência da autora num terreiro do Rio de Janeiro, conhecido por ser o lugar onde “o feitiço se materializa”. Na verdade, narra o percurso que vai desde as tentativas de chegar ao terreiro até a cerimônia final em que o fenômeno da materialização diz-se processado. O texto quase inteiro consiste na recomposição dessa experiência, onde a autora acentua os pormenores que se determinam como peças de um jogo que, se aceito, a enredará, junto com sua acompanhante, nas malhas de uma manipulação inevitável… E é o que ocorre. Mesmo surpreendido o engodo da materialização, a história determinou a autora (portanto personagem) num papel que não lhe é possível negar. Abdicar dele representa a impossível renúncia a uma história já acabada, pela aceitação de um desejo, de uma expectativa e dos mecanismos de adiantamento de realização desse mesmo desejo e dessa mesma expectativa.

O segundo ensaio, “O transe ou a metonímia do poder”, pode ser tomado como uma especificação do primeiro. Passa-se também num terreiro, mas em São Luís do Maranhão. Centrado na questão do transe e da “descida” do santo, o ensaio narra também uma forma de aprisionamento inevitável; mesmo não se dando o transe, de algum outro modo o ritual se cumpre. No caso, através do simbólico. Solução satisfatória para manter intacta a corrente que se cria entre o representante do poder e tudo o que lhe compete constituir pelo transe. Logo se evidencia aí outra face do jogo do poder: a do simulacro, apêndice das falhas. A autora-personagem não entra no transe, mas é “transitada”; o santo não baixa dentro dela, mas sobre ela. A falha é assim corrigida e o ritual se cumpre, apesar do logro. Como no caso anterior, não importa o engano se o que sobra é a integridade do ritual e do poder por quem ele se cumpre.

Desses dois ensaios, sem dúvida alguma, “Diabolavida” é o mais completo, fornecendo inclusive a chave para o segundo, que, de certa forma, fica redundante no contexto do livro. Cabe aqui assinalar uma questão fundamental, que permite justificar essa afirmação. A grande riqueza do primeiro ensaio está na sua própria montagem. O texto se faz como uma narrativa densa em que cada pormenor se justifica como elemento da captura. O discurso é sinuoso, porque se faz não só como uma recuperação de meandros, mas como um questionamento desses mesmos meandros – que preenchem sua função através dos significados que desencadeiam. Daí a impressão de uma experiência mais fecunda do que aquela transcrita e refletida no segundo ensaio, onde todo o episódio parece se dispor como pano de fundo para o momento do transe e da “descida” do santo.

A se pensar na especificidade que justifica tanto esses eventos quanto seu simulacro (a tentativa de substituir o real mágico pelo simbólico mágico) é de se entender que, como no primeiro ensaio, aqui o episódio contextual importa muito como regra de jogo, inclusive e sobretudo aquele que diz respeito à escolha da autora como participante do ritual. O pai-de-santo lhe nega ser espetáculo e obriga a autora à sujeição. Na mesma linha de raciocínio, tem importância o atabaque, que não é música de fundo, mas ritmo a despertar a disposição do sujeito ao transe; tem ele importância equivalente às palavras do pai-de-santo, cuja força poética fica a serviço da função mágica como instrumento de extravio da resistência e coroamento plurívoco do próprio ritual. Em outros termos, acredito que caberia neste ensaio a composição de uma narrativa que se ocupasse, como em “Diabolavida”, da pertinência de todo o episódio, que compõe não simplesmente o contexto de inserção de seus pontos centrais (transe e “descida” do santo), mas o lugar que prepara e fecunda o sentido desses acontecimentos.

O terceiro ensaio, que tem como domínio de referência o asilo [manicômio], narra a experiência de um paciente (aí chamado W), configurada e significada pelo exercício psiquiátrico. Trata-se de um ensaio brilhante e, ao lado de “Diabolavida”, é o que de melhor existe no livro. É claro que situar a questão do poder no interior da prática psiquiátrica não é tarefa nem recente nem original. No entanto, o texto tem uma força de denúncia conferida pela retenção de uma experiência modelar, onde caminham juntos a instituição psiquiátrica e o Estado, aí representada pelo jogo consular. O paciente sincretiza não apenas variáveis autobiográficas, como também variáveis sociopolíticas e culturais.

W é originário de Madagascar. Nascido em 1940, de pai francês e mãe malgaxe, perde o pai em 1947 na revolta nacionalista. A família se desintegra e ele vai para o orfanato, onde faz os estudos primários (1947-1953) e secundários (1954-1959), passa o baccalauréat, entra na universidade como bolsista do governo francês e, aos 24 anos, vai a Paris fazer uma tese sobre a mestiçagem. Aí germina não a tese, mas o drama de W, o de ser negro na França e francês em Madagascar. Não se forma o doutor, trama-se a sorte do mestiço. O trajeto de W é a tragédia de seu desenraizamento. O que a autora detecta de maneira incisiva é a direção implacável e determinada dos sucessivos “diagnósticos” que não só desconhecem o drama social do desenraizamento, como desenraiza o paciente de sua própria trama individual. O “diagnóstico” se faz pela conversão do sinal sempre equívoco no sintoma inequívoco. A paranóia, ao fim e ao cabo, preexiste ao paciente e amarra-o ao destino de um processo já decretado. Isso significa, em síntese, que o poder, nesse caso, não tem interlocução, na medida em que devora o que lhe apetece e o que se iguala à sua verdade, ocultando as diferenças.

O ensaio procede a um minucioso trabalho de análise dos diagnósticos, apontando a distância e a ambiguidade dos sinais emitidos pelo paciente e a surdez do diagnóstico que se faz pleno, apesar deles. A análise aponta ainda a concordância entre o diagnóstico e o percurso legal a ser feito pelo paciente, que tenta de toda forma resolver o dilema entre sua identidade, sua nacionalidade, sua cor e sua cultura.

A determinação do poder, nesse caso, centra-se na articulação de uma lógica à revelia do fato e a serviço do Estado. O que reduz a uma farsa o empreendimento psiquiátrico em questão. Mais ainda, situa o trabalho do psiquiatra no limite de sua contradição (“… por ser sintoma, o diagnóstico é a volta censurada do recalcado, daquilo que se objetiva na consciência prática da loucura (…) a exclusão imediata da diferença. Exclusão que no diagnóstico se faz mediatizada pelo saber objetivo. Nele se nega e se realiza o dogmatismo imediatista da consciência prática, assim retomada pela consciência analítica da loucura. Entre uma e outra, o recalque opera, para triar e racionalizar a demanda de exclusão”). Esse tipo de contradição permite distinguir entre o beneficiário mais imediato do poder (seu representante) e sua presa, de quem retira a energia que o alimenta e o papel que o justifica. O que em outros termos assinala não só a dependência do poder, mas a manobra para transformar a dependência em determinação. Detentor de um saber reconhecido, o psiquiatra desautoriza a interlocução. Resta saber o que faz o poder quando a interlocução insiste.

É justamente nesse ponto que deve ser situado o ensaio seguinte (“O poder ou a promessa de si mesmo”), onde a autora procede à análise do Tales of Power [Relatos de poder] de Carlos Castañeda. O fio condutor deste ensaio, incidindo sobre o discurso iniciático, é a questão de um requisito inquestionável da iniciação – o saber –, cujo acesso se faz, de um lado, pelo mistério e pela ambiguidade e, de outro, pela vontade do representante do poder. Como nos casos dos ensaios sobre a umbanda, a aceitação dos sinais que estabelecem a diferença hierárquica entre os participantes da trama arma-se aqui como a cenografia indestrutível de um espetáculo: o papel do iniciando é ser iniciado e aceitar que a alteração de seu estatuto depende da aceitação plena daquilo que é a vontade de seu iniciador. No entanto, à diferença daqueles ensaios, a questão do poder incide aqui sobre a relação entre discurso e poder ou, mais precisamente, sobre a apropriação do discurso, que não só define o momento e o lugar da locução, como decreta por antecipação o estatuto do discurso do outro, reduzindo-o à sua reprodução ou fundando sua incerteza (“O desencontro que permeia os encontros e trabalha as histórias de Castañeda é o efeito de uma temporalidade diversa para o aprendiz. A do primeiro é a transcendência em que está o sujeito – o poder – e de que resulta, no discurso, a protelação das respostas. A do segundo, correlativamente, é a da obsessão de um desejo de saber que não se realiza, um desejo que produz e reproduz enigmas.”, p. 65).

No “adendo” do ensaio, a autora relaciona a iniciação narrada por Castañeda com o processo psicanalítico, não tanto para o estabelecimento da diferença, mas para indicar o que resulta do desconhecimento dessa diferença. Remetendo essa reflexão para o artigo precedente, é de se admitir que, para a autora, a prática analítica se arrisca a um jogo em que o saber específico pode converter-se num jogo de feiticeiro e aprendiz, pela retificação deste à ótica do mestre (“sujeito suposto saber”), o que não ocorre na iniciação. Daí poder o analista suscitar a demanda sem responder a ela. (“Entra na análise enquanto interlocutor – papel que o analisando solicita implicitamente no início, explicitamente depois –, mas, em seguida, para não reforçar a demanda, recusa-se a sê-lo”.) Trata-se, sem dúvida, de uma difícil e perigosa empresa: seu papel filtra um modo de interlocução-limite entre representante do poder e representante do outro. Dilema que de outro modo a autora retoma no último ensaio.

Em “À guisa de concluir”, refaz e organiza as constatações dos quatro ensaios precedentes. É aí que situa de modo explícito que o poder se institui enquanto postulado de uma totalidade a se impor sobre sua presa. Deixando de lado a especulação em torno das formas explícitas de poder (desnudamento infeliz que o dilui), atenta mais para o que ele trama de maneira mais sutil. Fica claro aí que o que mais intriga a autora não é tanto a orientação explícita que vai do dominante para o dominado, mas o seu reverso: os apelos que no sujeito o fazem captura do poder. Daí que a face totalitária, antes de imposição, é mais um desafio para o sujeito (“Dissemos que ele – o poder – é do Outro; poder-se-ia acrescentar: é outro que não ele. De certa forma, o poder ex-iste a si mesmo, subsistindo numa promessa de vir a ser e nos vários desafios que lança, todos redutíveis a um só: Ser, como ele, capaz de tornar possível o impossível.”).

Esse desafio, no entanto, repousa na redução do desejo do sujeito à sua sujeição, negando-lhe, portanto, a via afirmativa. Esse jogo se mostra evidentemente na linguagem, no seu uso. Para a autora “não existe um poder exterior à língua, como não existe um poder desta indiferente à posição social”. Daí não ser possível pensar a questão do poder sem pensar no modus operandi da linguagem onde se cristalizam as interdições, os ciframentos e as condições em que a linguagem é usada. A questão está em distinguir, portanto, o que é uso verdadeiro e uso falso da linguagem, ou melhor, entre a palavra dada e a palavra apropriada. Aqui me parece residir uma decorrência problemática do livro de Betty Milan: a que a leva a distinguir entre o poder e a autoridade (“O poder legisla a fala… a autoridade está no dever dizer, dever simbolizar.”). É difícil, na própria linha de raciocínio da autora, a operação que implica separar a autoridade daquilo que a investe.

É inegável a importância de Manhas do poder pelo debate que pode gerar e pela engenhosidade com que foi arquitetado – e, sobretudo, por atacar o tema enfrentando suas próprias armadilhas. O livro pode ser compreendido e interpretado como produto de experiência sedimentando denúncias. Vale a pena refazer, pela leitura, o percurso da autora. E, acima de tudo, vale a pena enfrentar o incômodo que essa leitura causa.

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1. Haquira Osakabe, professor universitário e especialista em Literatura Portuguesa e Linguística, autor de Argumentação e discurso político e Fernando Pessoa: resposta à decadência, além de capítulos em diversas obras coletivas, publicou este estudo no jornal O Estado de S. Paulo, em 9/06/1979. Atuava no Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, campus de Ribeirão Preto. Faleceu em maio de 2008.