Antígone no país dos tupis

Antígone no país dos tupis

 

Michèle Sarde (1)

Se é que os textos biculturais existem, como os bilíngues, Consolação é um desses textos. Porque se trata de uma lamentação em duas culturas, a francesa e a brasileira.

Por terem vivido o amor, os dois tinham trocado suas raízes: a viúva brasileira de um marido francês volta a São Paulo para encontrar numa cidade sem vergonha e sem memória, o espírito do bem amado. Importa que ela tenha deixado na França o corpo dele vestido de smoking e apontado como uma espada para o leste contra o invasor germânico, ameaça imortal de que o francês da Alsácia queria proteger o filho na eternidade? É no contexto das grandes vozes de artistas brasileiros que Laura consegue enfim distinguir a de Jacques. Uma voz de morto poliglota, que se manifestará para dizer à sua viúva que ela é mãe antes de tudo, que ela é mãe depois de tudo.

O repertório de Betty Milan é suficientemente rico para incluir, num mesmo equilíbrio, a evocação de um amor francês, que acaba num hospital rigorista — onde o que conta “não é aliviar o sofrimento, mas não infringir a lei” — e a conversa com os mortos brasileiros, obra de magia negra, convocação de manes célebres, que dialogam sem mais à luz do dia de uma metrópole sul-americana.

Porque, se foi a França de Chateabriand, Rabelais e André Breton que o marido francês ofereceu à brasileirinha como presente de casamento, é o Brasil de Mario ou de Oswald de Andrade, com o seu Manifesto Antropófago, que a narradora lhe oferece em dobro. A antropofagia, como ingestão do outro e da sua memória pessoal e histórica, é o viático que vai permitir a esta nova Eurídice, sob a máscara de Orfeu, se perder no reino dos mortos para aí encontrar de novo o seu caminho entre os vivos.

Continuação onírica de O Papagaio e o Doutor, que narrava a viagem iniciática de uma jovem brasileira ao país do Doutor Lacan, Consolação conta a volta de uma irmã da primeira, depois de ter vivido uma vida na pátria do Doutor e ter gerado um filho. Porque o filho é o laço que une para sempre não somente Jacques e Laura, mas o país dos tupis ao das Luzes. O filho é, no fio das gerações, o funâmbulo que liga o pai defunto ao marido perdido, a passarela entre o Brasil materno e a França paterna, um vivo, promissor de outras vidas. Quanto ao papagaio totêmico, ele continua presente e ele “diz a sorte”.

São Paulo, capital da alegria num Brasil pré-colombiano, que descobriu a alegria antes de os portugueses o descobrirem. São Paulo, capital da dor, acolhe, à sua maneira, a viúva vinda de Paris, a capital da liberdade. Se o Brasil representa a força da vida e da alegria pagã, a velha Europa que a narradora deixa seria então o antro do declínio e da morte? Não. Porque o romance de Betty Milan não é maniqueísta. Ele é simplesmente aberto para o mundo, um mundo onde é possível chorar e se consolar em várias culturas, onde os mortos falam todas as línguas e as fronteiras entre os poetas são pedaços de parede em ruínas.

No mundo de Consolação, os limites entre os vivos e os mortos desaparecem e as linhas de demarcação se apagam. A sabedoria procurada e reencontrada não sai apenas dos lábios inexistentes e sem cor dos que já não estão – o pai, os poetas, o marido –, porém também das bocas esfomeadas dos pobres – mendigos, ladrões e coveiros –, que acordam cedo para viver sua existência miserável e, no entanto, tão preciosa quanto a dos ricos, que a droga da vida também não poupa. Esboça-se aí o perfil de um Brasil tomado pela violência e pela corrupção, e o país de baixo acaba encontrando o país de cima, porque os mais miseráveis não são os mais infelizes.

Na metrópole tentacular, onde aflições e depravações se multiplicam, os humildes entre os humildes são retratados em sua qualidade única e individual de sobreviventes do cotidiano, heróis da trapaça e da esperteza, que se viram para aproveitar ao máximo, não perder um só minuto da vida. Consolação não é só a elegia de uma amante que chora o desaparecido, mas a descida ao inferno da viúva – a obscura, a inconsolada –, ao mundo subterrâneo dos mortos e dos quase-mortos, os sobreviventes da difamação e da despossessão, os pobres seres da rua aos quais o acaso e a boa vontade permitiram ficar fora dos jazigos e das tumbas, ao lado do cemitério.

No entanto, contrariamente à mensagem do mito órfico, a cronista do além e do aquém voltará consolada da sua reportagem. Na necrópole, metáfora do abismo e do império sombrio, ela encontrará a paz. Não por ter atravessado o rio Letes, e sim por ter afrontado a verdade do passado e do presente e ter conjurado os demônios da desesperança. Isso acaso quer dizer que, para se consolar do luto, é preciso voltar a si mesma, à cidade natal, à origem dos ancestrais “turcos”, ao pai, embora ele também já tenha desaparecido, à mãe, embora ela ainda esteja viva – ainda e por quanto tempo?

Se a cidade é São Paulo e o lugar é o Cemitério da Consolação, o espaço onírico é o Brasil inteiro, o Brasil contado ao marido morto, que acompanha Laura na sua conversa com os fantasmas. Uma voz a mais no cortejo de poetas e homens célebres que vão prodigalizar a consolação de que ela precisa para não morrer também. Mas é uma voz que se impõe como a voz principal deste concerto de sombras, do qual participa  inclusive o pai de Laura, enterrado no cemitério com os outros, na sombra da cidade do futuro.

Porque a modernidade deste novo mundo se sustenta numa ética da demolição e da destruição, onde a cidade não tem dó do que ela devora, onde «só o novo conta». Alquimia de uma mestiçagem incessantemente renovada, cidade antropofágica, mais do que canibal. Cultura que come o homem, mas cospe humanidade. Os pagãos tupis engoliram os jesuítas, os ricos colonos brasileiros absorveram as vagas de imigrantes, inclusive os “turcos”, ancestrais de Laura. E ela própria devora, numa língua cheia de ginga, o marido francês – todo apertadinho no seu terno e no seu idioma regulamentado – e lhe administra um português desconhecido na língua de Montherlant.

Assim, a saudade, leitmotiv da narração, resíduo intraduzível que constitui o cerne de uma cultura. A saudade ou a nostalgia. Nostalgia de um lugar e depois de outro, nostalgia de um ser e de vários, nostalgia do que a gente não tem mais e nos é restituído através da saudade. Até que este vocábulo se naturalize por si só, sem ter que passar pela máquina da tradução que empobrece a palavra e a banaliza. Não há mais razão para nostalgia quando se tem a saudade. Não há mais razão para sentir a falta de Jacques em carne e osso, porque Jacques existe na ausência e na presença. Correntes de transmissão de pensamento entre a viúva e o filho, o marido e o pai morto, que se tornaram estrelas e velam pelos vivos. Superaram a sudorese e a impotência da agonia física. O espírito deles reapareceu na cidade da ressurreição. Estes dois duplos do Virgílio de Dante conduzem Laura através dos círculos infernais, suas vozes se misturam às dos poetas desaparecidos num hino à alegria e à vida. A vida que só é tão preciosa pelos seus limites.

O que os sábios murmuram é que perder “não é não ter”. Perder alguém é uma maneira de merecer a pessoa de novo e para todo o sempre. Perder é uma maneira de o ser aumentar, pois o ser amado se acrescenta a ele e se torna o seu duplo. Por outro lado, não perder não significa ter. Saber que a gente não pode perder de novo o que já perdeu é… Consolação! Este livro é um breviário da superação do luto.

Desde a antiguidade, as mulheres são as sobreviventes encarregadas de acompanhar os mortos e lhes dar sepultura. Laura encarna uma Antígone que se lamenta por não ter podido ajudar Jacques a morrer, em nome da lei divina e natural. Porque esta lei, garantindo “uma boa morte”, se opõe ao regulamento rígido do hospital francês, que prolonga a agonia dos moribundos interditando o que ele chama de eutanásia. Como Antígone, Laura vai reparar o perjúrio em relação a Jacques, ajudando-o a ressuscitar do outro lado do oceano, no cemitério brasileiro da Consolação.

Nesta narrativa moderna e lírica no feminino, os bem-amados mortos são os homens, enquanto as mulheres são as grandes vivas ou sobreviventes. E as mulheres sem homens não são nem viúvas alegres nem viúvas tristes, mas viúvas errantes, à procura de túmulos que lhes falem com vozes familiares, a fim de domesticar a morte que virá buscar cada uma das almas quando ela  bem entender. No frenesi orgiástico do teatro e do Carnaval, Laura se tornará enfim o que ela é, a viúva nua, a viúva radiosa que, mesmo sem Jacques, continuará a fazer da vida uma festa.

Mas a viúva não é a única no espelho, ainda que o genitor já não se reflita nele. Porque é o filho que fecha a dança macabra e abre o baile dos vivos: Laura, filha de sua mãe, ou Alex, filho de Laura. Porque a mãe continua a ser, de uma a outra geração, a sobrevivente, cuja vida é esperar que o duplo do falecido volte para casa e aí fique para sempre… Suprema elegância das viúvas!

Ao escrever este posfácio, também eu gostaria de dizer adeus a Jacques e aos seus duplos e de fazer o luto dos que nos precederam na viagem das trevas, como nos iluminaram na viagem da vida. Agradecer ainda à viajante dos confins, que nos oferece esta consolação universal, através de uma narrativa grave e revitalizadora.

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1. Michèle Sarde é escritora, professora e biógrafa de Marguerite Yourcenar e de Colette, além de ensaísta premiada pela Academia Francesa por seus estudos sobre as mulheres na França. Ensinou literatura e cultura francesa na Universidade Georgetown (EUA), da qual é Professora Emérita.