Amar é uma performance

Amar é uma performance

 

José Celso Martinez Corrêa (1)

A primeira leitura de O amante brasileiro, adaptação teatral do romance de Betty Milan, no dia 16 de fevereiro [de 2004], foi uma noite histórica do Teatro Oficina, em que os mistérios de sua longevidade de eterna juventude, sua contribuição mais original e profunda ao teatro brasileiro e mundial se revelaram.

Uma das obras fundadoras do teatro mundial, afirmadora da sua origem trans-humana-divina nos orixás Dionisos e Eros, é o Phedro de Platão. Nela é desmistificado o Teatro de Dionisos, clonado por Zeus para aplacar a inveja e o ciúme da esposa legítima, deusa Hera, que queria assassinar o deus do Teatro. Zeus deu esse brinquedo a Hera, o teatro representado, o teatrão, onde a inter-relação vida-arte-libido são sublimadas no palco italiano distante, separado do público pelo cabaço antiorgya da quarta parede.

No Phedro de Platão, a arte do amor, da projeção do Amante divinizando o Amado, é acolhida por este, que ouve o canto das cigarras, cai na cantada e deixa acontecer o sonho vivo, a realidade da fantasia da arte, a da paixão libidinosa.

Betty atualiza o mito, psicanalisa, além da psicanálise, o Oficina e revela a relação inseparável entre a arte da atuação e a arte de amar. Sempre fico sem saber o que responder quando me perguntam o que é preciso fazer para entrar no Oficina, ou quando os mais grosseiros vão de cara falando com preconceito, profanação modernosa, no milenar “teste do sofá”.

Eu cultuo o teste do sofá em forma de palco-cama. É o mesmo do rito sagrado de origem do Teatro documentado por Eurípides, onde Pentheu é enrabado por Dionisos em forma de um Carvalho e depois estraçalhado e devorado pelas Bacantes. É o descabaçamento, ou a tranquila iniciação amorosa do Cogata, o mais jovem ator, pelo Mestre, no Teatro Nô, revelada em Taniko.

Agora, posso tranquilamente responder, leia O amante brasileiro, tente apagar o seu novo engano. É bem mais eficiente do que dois anos de escola para obter DRT. O ator-atriz precisa também de ação inventada, intensa, cruel, de imaginação, de cultura da vida, violação a si mesmo, enfim, de tudo o que o amor exige do Amante e do Amado para dar sua recompensa insubstituível: o estar-no-mundo-como-estar-em cena.

A leitura do Amante, primeira direção do belíssimo Fransérgio Araújo, um deus do amor, que me ensinou desde que nos conhecemos que “o amor é uma questão de performance”, só tinha que ser esse acerto absoluto que é. Fran é um feiticeiro do amor, revela no seu trabalho todas as bruxarias, epifanias, delicadezas, emanações de sua própria beleza.

Além da instalação sensorial, helioiticiquiana do espaço cênico criado por sua arte, sua direção de atores apaixonados feita em pouco mais de uma semana brilhou pelas galerias e pista do teatro maravilhosamente iluminadas, por seu demo, transformando tudo numa nave louca, viajando Paris, São Paulo, cidades orgyadas, misturadas.

Os atores, os amados, bacantes praticantes, deuses na arte do amor e da performance, inspirados no Amante contagiam uma equipe de enamorados, desde o produtor-ator Clayton Marques, a diretora de cena, a divina Elizete Jeremias, o São Sebastião, Lucas Braguioli, num pimbim, refletor móvel que acompanha os atores, chamado no tempo de Roda viva de “porra louca”. E os olhos brilhantes de capa de disco de música pop ou os mais precisos de luz-diamantes de Gabriel Fernandes, e os azuis-orgásticos-reichianos de Henrique Palazzo, atrás dos ollhos das câmeras de vídeo, transmitiram nos monitores os olhos secretos do amor explicitado. A narração absolutamente destheatralizada com a voz viva da viva intimidade do editor jornalista, ator e diretor Nelson de Sá. O público, com as exceções de sempre, dos que temem o amor, cai de boca.

Há os ressentidos e ofendidos com a proclamação despudorada de que a atuação do Ator é a do Amado e do Amante. A origem do Teatro está na orgya sensual religiosa, que foi durante toda a história ocidental denegada e substituída pela Moral – o pior e, mais desprezível, sórdido vício da canastrice, que tem amarrado esta arte na mediocridade clonesca de Hera.

Por isso, é preciso fechar com a chave de atores dourados e adorados esta crônica-desabafo. As portas da percepção desta sacação, abertas pelo Amante-Amado Ricardo Bittencourt e pela deusa da Adoração Luciana Domschke, loura reencarnação da etherna Marylin, com seu despudor que deve chocar as profissionais do clone siliconado da má pornografia americana dos multishows. Fran espermou o espaço, fez colocar no centro da pista duas pombas riscadas de areia, com estrelas, como ponto de encontro dos amantes distanciados por cidades diferentes, uma mesinha cheia de copinhos de garapa, epifania do furor brasileiro de brasa da poeta autora, que cheira o rio Sena como garapa pernambucana escorrimentada. No fluxo contínuo orgasmático de sua interpretação, Luciana explode improvisando no gozo inesperado e faz-nos gozar a todos atirando-se aos copinhos, rolando-se, lambuzando seu grande corpo, enaltecendo seu discurso phala flutuante, estourando em fogos sem artifício. Fogos! Foi ela que me levou a voltar a fazer teatro depois do exílio, na orgya pré-aids de Os mistérios gososos num Todos os Santos, Todos os Mortos, na EAD. Esta deusa é uma transmulher; preparem-se, porque sua energia de mãe, amante, esposa, atriz, médica agora transborda as reservas.

Ricardo Bittencourt, o Amante, pode aqui transcender seu transcendente talento vocal, histriônico, trágico, dramático, de grande ator, para encontrar-se com seu Amante Amado da vida e vibrar no ano astrológico de Vênus como sua encarnação na terra da pista. O baiano aterrissa agora em São Paulo de vez, nas phalas fluxos exaltatórios de Betty, com todo seu poder de Egebê Odé de Mãe Stella e de centro aberto de todas as declarações de dores, alegrias do amor do Tyaso, companhia de atores do novo cordão dourado de amores enredados do Oficina. Betty fez dele seu Amante, lhe dando a cura para lá de Lacan, do que julgava sua doença ser seu ser de Cura, seu Xamã de amor, entre lágrimas e gargalhadas, privilegiado curandeiro agora de multidões, que, nesse Carnaval estranhamente ressuscitado, provam que está renascendo a política libidinosa das massas. Multidões que vão virar do avesso o Brasil e repor na nossa bandeira o Amor, castrado de nossa bandeira, empobrecida com a miséria da ordem e do progresso.

Betty, depois de toda exaltação, nesta peça sem conflitos, de amor corajosamente desamaldiçoado, amigável, entra arrasando como atriz em personagem antagonista da esposa do Amante, como Hera, e espalha mais tesão ainda. Ela encarna a parte da plateia que, ainda como o bucho Bush, édipo-de-bolso, quer decretar a castidade, a fome, a carência e a desunião dos que materializaram a Gaia Ciência de Nietzche, os Gays.

Ou o escândalo da expulsão de Joãosinho Trinta de sua escola de samba, justamente a que mais brincou, carnavalizou, erotizou o Carnaval às vezes morto do Sambódromo do Rio. É muita coragem. Toda minha Gratidão e Etherna Paixão, pois puseram para correr por aí o boato de que o amor iluminou o inferno e voltou a ser etherno.

São Pã, quarta-feira de cinzas, 25/02/2004

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1. José Celso Martinez Corrêa é ator, diretor e criador do Teatro Oficina. Texto inédito, distribuído à imprensa e à plateia após a estreia da peça em 25/02/2004