A vida imita a arte

A vida imita a arte

 

Claudio Willer (1)

Fale com ela é um consultório sentimental, modalidade jornalística que já deu margem a pelo menos uma narrativa importante, Miss Lonelyhearts, de Nathanael West. No Brasil, tem pelo menos um precursor notável, Nelson Rodrigues, como bem observa a autora no prefácio. É dividido em 75 pares de cartas – consultas de leitores da Revista da Folha, do jornal Folha de S. Paulo, que compuseram a seção com esse nome, e que agora se transferiu para a versão on line da revista Veja, em www.veja.com.br/bettymilan – e de respostas da autora, psicanalista e escritora com extensa obra publicada.

Com uma edição rapidamente esgotada na época de seu lançamento, em abril de 2007, Fale com ela talvez apareça em listas de mais vendidos. Nesse caso, em qual categoria vai figurar? De não-ficção? Desse ramo colateral da não-ficção, a auto-ajuda? Ou, hipótese menos provável, como literatura? A Editora Record parece acreditar nessa terceira possibilidade, pois sugere a catalogação do livro como “crônicas brasileiras”; portanto, como gênero literário, embora não necessariamente ficcional. Classificar como auto-ajuda, por sua vez, não seria incorreto: afinal, os consulentes, aqueles que possibilitaram a existência dessa seção, enviam mensagens movidos pela inquietação, insatisfação, sofrimento: por necessitarem de respostas.

No entanto, há uma diferença fundamental entre Fale com ela e a caudalosa produção editorial de auto-ajuda: cada obra dessa modalidade, mesmo partindo de experiências pessoais do autor, e frequentemente escrita no modo autobiográfico, apresenta algum método ou conjunto de regras aplicáveis a todos os seus leitores – ou a alguma grande categoria de leitores: profissionais de alguma coisa (público-alvo aparentemente majoritário), os infelizes, os que anseiam pelo encontro com Deus… (haverá categoria mais universal, ou mais pretensamente universal, que Deus?)

Já em Fale com ela, temos o reino do particular: cada caso é um caso, embora se destaquem, do conjunto de consultas, aquelas de alguém perturbado por sua identidade sexual (como os héteros que se descobrem ou suspeitam ser homossexuais), dos que não alcançam o prazer sexual, ou só o alcançam em condições especiais e atípicas, as uniões que, por alguma dentre muitas razões estão terminando ou se esvaziando; e, contribuindo para que o todo tenha uma tonalidade mais sombria, as traumatizadas por abusos sexuais.

Esses consulentes, os leitores-interlocutores de Fale com ela, encontram o que buscavam? O que recebem de volta? Em alguns casos, ganham uma interpretação ou hipótese de interpretação, sempre feita com cuidado, por uma especialista que sabe muito bem qual é a distância entre o consultório e o espaço na imprensa. Com frequência, recebem a sugestão de fazerem análise. Ouvem, ou melhor, leem variantes – e essa seria a regra mais geral que pode ser discernida em Fale com ela – do conhece-te a ti mesmo socrático e freudiano. E, ainda, ganham implícitas recomendações de leitura, toda vez que Betty Milan faz o paralelo entre o que é exposto e algum personagem, tipo ou situação de obras literárias, ou ao tema de um bom ensaio. Tais remissões à literatura são amplas e diversificadas: vão dos clássicos aos contemporâneos, incluem poesia e prosa, Platão, Sêneca, Camões, Wilde, Sartre, Saramago, Oswald, Octavio Paz, Caio Fernando Abreu, Graciliano Ramos, Ginsberg… Se, com essas recomendações e referências, Betty Milan contribuir para formar alguns leitores, estimulando buscas da própria identidade em obras literárias, então já terá prestado uma grande ajuda.

Haveria mais a comentar, a propósito da literariedade de Fale com ela, inseparável da diversidade dos casos que são apresentados. Alguns, de modo evidente, dariam margem a um enredo e tanto de narrativa ficcional, pelo que têm de insólito. Ou, melhor ainda, a combinação e interação de vários dos casos em um só enredo, de maior fôlego. Ao mesmo tempo, remetem à literatura. A arte imita a vida ou é a vida que imita a arte? Ambos, evidentemente, e essa implícita dialética entre os acontecimentos do dia-a-dia e a produção simbólica confere interesse adicional a Fale com ela, tornando estimulante sua leitura.

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1. Claudio Willer é poeta e tradutor de poesia, tendo assinado a versão brasileira de Uivo, de Allen Ginsberg. Publicado na revista virtual de cultura Agulha, n° 57, Fortaleza / São Paulo, maio-junho, 2007.