A força da palavra no livro ou no jornal

A força da palavra no livro ou no jornal

 

Cid Seixas (1)

Betty Milan, a romancista de A paixão de Lia, O Papagaio e o Doutor e a ensaísta conhecida por meia dúzia de livros polêmicos, sem esquecer a tradutora e a cronista, registra suas incursões por um velho gênero jornalístico: a entrevista.

Neste livro. ela reúne 21 entrevistas publicadas de fevereiro de 1992 a agosto de 1996 na Folha [de S. Paulo] e no Estado [de S. Paulo], com escritores, filósofos e psicanalistas de várias partes do mundo.

Já se disse que a matéria jornalística desaparece no dia da sua publicação. À noite, ela já está caduca. Como Betty Milan não é profissional da imprensa, ela realiza suas entrevistas sem se prender às regras básicas do jornal: usa tão-somente sua inteligência. O resultado é um texto que, sem afrontar os objetivos da cobertura jornalística, inscreve-se como um momento de reflexão, ou melhor, de diálogo entre interlocutores privilegiados.

Todos conhecemos a resistência de alguns intelectuais à concessão de entrevistas, alegando que o timing e o foco da reportagem anulam os pontos essenciais do dito, elegendo como prioridade aspectos acidentais, que, ampliados, transformam o que foi dito no que não foi dito. Daí a generalização feita por alguns monstros sagrados, que coloca num mesmo patamar a entrevista feita por um estagiário – um “foca”, como se dizia nos meus tempos de repórter – e o diálogo com o jornalista especializado, ou mesmo com o entrevistador freelancer.

Betty Milan pertence à última categoria. Trata-se de uma intelectual inquieta e bem formada (além de bem informada), que brinda o leitor de jornal com entrevistas que são diálogos inteligentes e, por isso mesmo, capazes de extrair o máximo de alguns minutos de conversa.

Octavio Paz, Jacques Derrida, Edouard Glissant, Michel Serres, Catherine Millot, Alain Didier-Weill, Hélène Cixous, Patrick Grainville, François Weyergans, Alicia Ortiz, Alain Emmanuel Dreuilhe, Françoise Giroud, Hector Bianciotti, Françoise Sagan, Michèle Sarde, Jean d’Ormesson, Tahar Ben Jelloun, Alvaro Mutis, Nathalie Sarraute, Dominique Fernandez e Jean-Claude Carrière encontram em Betty Milan uma interlocutora arguta, sempre pronta a ouvir o esperado e o inesperado.

Sua entrevista com Derrida é uma verdadeira “guerra” de cavalheiros (e damas), um xadrez, pela força da palavra. O filósofo acredita que nada pode ser dito na circunstancialidade do jornal, no turbilhão dos segundos que reclamam a pressa. É como se ele pensasse de fora do tempo, sem as imposições do tempo. Submetido à ordem de Cronos, seu pensamento reluta, se rebela e trava; suas palavras se esgotam. A entrevistadora recua, avança, propõe. Conhecendo as manhas da impotência – e as do poder –, ela desiste, insiste e por fim registra o entrecortado e vivo diálogo com o entrevistado.

A questão da mestiçagem, a Aids, o budismo, Marx, escuta psicanalítica, literatura, liberdade, são temas presentes nas entrevistas. Clarice Lispector tem destaque nas falas da romancista Hélène Cixous, figura reconhecida no nouveau roman, e da psicanalista Antoinette Fouque, uma das criadoras da Éditions des Femmes.

Na introdução deste livro de escuta, Betty Milan faz uma verdadeira síntese da metodologia da entrevista, revelando o sutil expediente de passar daquilo que o entrevistado quer dizer, isto é, do assunto do seu interesse, àquilo que o entrevistador quer saber. Por fim, ela estabelece um paralelo opositivo entre a sua estratégia e a do jornalista, situando a diferença da escritora precisamente no interesse pela palavra do outro. Em outros termos, na escuta.

Enfim, o livro de Betty Milan é um almanaque de variedades, onde as ideias e a força da palavra espreitam o leitor.

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1. Cid Seixas é professor universitário, escritor e jornalista, tendo mantido por muitos anos a coluna “Leitura Crítica” na imprensa de Salvador. É autor de uma dezena de livros, entre eles O lugar da linguagem na teoria freudiana e Os riscos da cabra cega: recortes de crítica. Publicado em A Tarde, Salvador,